Não podemos nos dar o luxo de vender barato os nossos votos

Não podemos nos dar o luxo de votar de forma inconsciente. De não pensar um pouco antes de apertar os dedos na urna eletrônica. De refletir, cuidadosamente, no candidato que escolhemos. Não podemos ser um eleitorado invisível, estatístico do Datafolha e do Ibope. Seria um luxo demasiado caro para os homossexuais brasileiros.

Hesitei muito em começar a escrever esta crônica, e mais ainda na publicação. Lidar com política e com as opções políticas de cada um não é nem um pouco fácil. Por um lado, não é o mais popular dos temas fora de alguns lugares comuns (pérolas de Feliciano ou alguma decisão judicial); por outro, existem interesses de natureza diversa que governam a escolha de um político ou de outro, independente da orientação sexual e da identidade, gay ou não.

Contudo, acho necessário sinalizar a importância que a participação na política, institucional ou não, tem para os cidadãos LGBTT como um todo. Por uma razão muito simples: ainda é necessário lutar, arduamente e de forma cotidiana para sobreviver num contexto social onde a homofobia é constante – seja de forma velada, seja de forma explícita. Os políticos homofóbicos, sobretudo os da bancada evangélica/religiosa e seus apaniguados, ao lado dos apregoadores da governabilidade, nesta conjuntura são verdadeiros inimigos da plena cidadania para sujeitos LGBTT. E inadvertidamente, o voto destes mesmos cidadãos frequentemente podem eleger políticos homofóbicos.

Neste sentido, dois episódios são sintomáticos, um na política nacional e outro na política municipal. O primeiro diz respeito às polêmicas em torno do licenciamento de Marta Suplicy (PT-SP), relatota do PLC 122 entre 2009 e 2012, o famoso projeto que dispõe sobre a criminalização da homofobia. Ao ser indicada ministra da cultura, Marta Suplicy cedeu a vaga ao suplente de senador Antonio Carlos Rodrigues (PR-SP), católico praticante e abertamente contra o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e a legislação de que trata o projeto. Para desespero do movimento LGBTT em todo o país, prometeu inclusive militar contra o projeto, em entrevistas amplamente divulgadas pela mídia:

“Vou seguir sempre as posições da Igreja Católica nas votações. Para mim homem é homem e mulher é mulher. Também sou contrário ao aborto e à eutanásia”, afirmou nesta quarta-feira (12) o vereador paulistano, após uma sessão na Câmara Municipal marcada pelas homenagens dos colegas ao novo senador por São Paulo.” [1]

Tal agenda política causou um enorme mal-estar entre os eleitores da senadora Marta Suplicy, tida como tradicionalmente alinhada com o movimento LGBTT. Parecia absurdo que a saída de uma aliada, com trânsito no executivo e no legislativo desse lugar a um retrocesso de tal ordem: afinal, assumiu a cadeira um parlamentar, que, num estado que se intitula laico, promete votar de acordo a suas convicções religiosas, e não ao interesse comum e menos ainda de grupos minoritários. Mas o mais absurdo é que as centenas de milhares de votos recebidos por Marta Suplicy agora são representados por um político que está, evidentemente, em total descompasso com a agenda política pró-direitos LGBTT da senadora. Afinal, os dois são membros de partidos com agendas opostas, já que o PT defende algum tipo de reformismo social, enquanto o PR assume neste aspecto uma orientação conservadora.[2] A lógica que prevaleceu, pois, não foi em torno da coerência de projetos, ou minimamente, de princípios: mas em torno da governabilidade nas casas legislativas federais, representada pela chapa entre PT e PR. A lição que fica para o eleitor LGBTT é a de vender seu voto muito caro, e sabendo claramente que ao optar por um aliado histórico, pode-se estar elegendo um inimigo futuro da mesma chapa.

A questão de um suplente com um conjunto de propostas totalmente oposto ao de Marta Suplicy e a de uma parte de seu eleitorado foi apenas um dos problemas naquele contexto. Havia outro, ainda mais grave. Com a relatoria em aberto, qualquer senador poderia se candidatar para a vaga, o que de fato ocorreu: ninguém menos que Magno Malta (PR-ES) pediu para assumir o cargo.[3] Não é preciso recuperar o histórico do senador para saber que a relatoria  de um projeto desta magnitude nas mãos de um dos líderes da bancada evangélica teria consequências perniciosas para os defensores da lei. Depois de uma reação da sociedade civil, a relatoria terminou nas mãos do senador Paulo Paim (PT-RS), e segue em tramitação. Ainda assim, durante três meses (setembro-dezembro de 2012) a questão ficou em aberto, e o governo federal demonstrou  que os direitos LGBTT certamente não entrar na hierarquia de prioridades. Enquanto na indicação de outros cargos e relatorias (entendidos como mais nobres – ou mais úteis) envolvem grande cuidado na indicação de seu ocupante, a questão aqui parece ter sido tratada de forma tosca, tacanha, sem inclusive algum espaço para que, antes do licenciamento, a senadora passasse a relatoria para um politico pró-direitos LGBTT.

Mas temos outro caso bastante relevante na política estadual em Salvador. O deputado estadual Pastor Sargento Isidório  filiado ao PSB (partido de esquerda com uma agenda de reformismo social e ao menos, simpatia pelos direitos LGBTT), provocou mal estar na assembleia legislativa e na câmara de vereadores ao usar a tribuna para a defesa da cura gay e das posições homofóbicas e racistas do deputado federal Marcos Feliciano (PSC-SP).[4] Isto gerou uma situação bastante complicada, já que apesar de o parlamentar ter se colocado num conflito quase sem conciliação com o programa do partido, que é de apoio aos direitos LGBTT, continou filiado ao PSB até meados de outubro de 2013, quando se filiou ao PSC sem a perda do mandato.
É necessário pensar, que durante este período votar num candidato do PSB, digamos, ao governo do Estado ou ao senado federal poderia significar dar espaço e trânsito a figuras como a do deputado pastor Sargento Isidório não apenas nos debates do legislativo, ou junto ao seu eleitorado: mas sim, inclusive, a possibilidade de intervir negativamente nas tímidas políticas estaduais para o segmento LGBTT. O voto, que deveria justamente ir para um partido minimamente alinhado com uma agenda pró-direitos, neste caso, serviria para eleger um político não apenas contrário, mas abertamente militante contra direitos a exemplo do casamento gay e da criminalização da homofobia. Com possibilidade, inclusive, de integrar comissões executivas que determinam políticas para este segmento no estado. Em suma: mesmo que na querela entre Isidório e o PSB o partido tenha mantido alguma coerência entre projetos pró direitos LGBTT e ações concretas, esta talvez seja resultado muito mais da importância atribuída as negociações políticas do que a estes direitos.

Um caso similar desponta nacionalmente neste momento, envolvendo também o PSB representado pelo seu candidato a presidência, Eduardo Campos (PSB-PE) e a ex-senadora Marina Silva, figura de proa do movimento político Rede Sustentabilidade – e abertamente contra o casamento LGBTT – embora a favor de algum tipo de união civil.[5] Se votar num presidente que vem de um partido ao menos simpático a uma agenda pró-direitos, a vice-presidente neste caso parece ser um problema – ou ao menos, um elemento a ser levado em consideração na equação. Afinal, num país com o histórico da eleição da chapa Tancredo Neves/José Sarney, quando o segundo assumiu a presidência pela morte do primeiro, ou Collor/Itamar Franco, quando o segundo assumiu a presidência pela renúncia do primeiro, parece razoável refletir sobre o papel dos vice-presidentes, mesmo que o bom-senso aponte para uma função mais cerimonial que efetiva. Vale ressaltar, no caso de Eduardo Campos/Marina Silva que tanto a cabeça de chapa não está claramente definida, como as intenções de voto em Marina Silva são maiores que as em Eduardo Campos – o que torna a suposta vice incomodamente capitalizada para negociar o que é prioritário, o que é importante e o que é meramente perfumaria, inclusive, dentro da lógica que foi demonstrada acima.

Não se trata, de maneira nenhuma, de fazer proselitismo de um ou outro partido: mas de pesar de forma adequada quais políticos que merecem os votos e quais não merecem. A equação não é simples: frequentemente, votar num candidato é votar numa chapa com políticos em completa ignorância dos direitos LGBTT, quando não em militância aberta e constante contra estes direitos. Devemos pesar muito bem e de forma consciente o menor dos males: votar num candidato alinhado com os direitos e políticas públicas LGBTT, mas sem uma chapa com um grande partido; ou votar num candidato alinhado, mas parte de uma chapa que pode transformar os direitos LGBTT numa questão de menor importância.

Cabe ressaltar, aqui, uma iniciativa interessante: é a cartilha LGBTT, que presta um serviço inestimável de mapear, na quase totalidade dos partidos nacionais, como se posicionam em relação aos interesses do segmento LGBTT, quais são as chapas, integrantes simpáticos ou hostis, etc. Disponível neste link.

 


[1] a questão teve ampla divulgação nos meios de comunicação nacionais e locais, a exemplo de: http://www.folhavitoria.com.br/politica/noticia/2012/09/suplente-de-marta-e-contra-seu-projeto-sobre-uniao-gay.html

[2] http://www.partidodarepublica.org.br/partido/historia_do_pr.html. Não farei nesta crônica uma digressão sobre o tema do conservadorismo contido em certas fórmulas. Apenas noto que, se o limite da liberdade individual é a natureza, basta inscrever afetividades divergentes como não naturais para manter o status quo, como o senador Magno Malta fez em seu site pessoal: http://www.magnomalta.com/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=2097:magno-malta-continua-contra-casamento-entre-homossexuais&catid=27:outras-notas&Itemid=45

[5] a rejeição de Marina Silva pelo casamento gay foi amplamente divulgada em diversos meios de comunicação: http://www.estadao.com.br/ noticias/nacional  ,marina-se-declara -contra-casamento-gay,560871,0.htm

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 17 de Outubro de 2013

Tomboy (2005)

Dirigido por Céline Sciama. Tomboy certamente é um dos filmes mais impactantes sobre infância, descobertas e a (não) naturalização de papéis de gênero. O longa enfoca algumas semanas na vida de Laure (Zoé Herán), que ao se mudar para um novo condomínio com a mãe grávida, o pai e a irmã assume gestos, vestimentas e comportamento do gênero oposto, inclusive com um novo nome – Mickael.

O longa apresenta com grande sensibilidade um processo que poderia ser melhor descrito como uma experiência de transgenerismo. Assim, Laure processualmente passa a viver como Mickael fora de casa, e como Laure lá dentro. Neste sentido, é um mérito absoluto do filme apresentar tanto a desnaturalização da associação entre sexo e gênero (respectivamente macho e fêmea, homem e mulher) como nuançar uma realidade dada pela natureza que parece fortemente dicotômica. Ou se é uma coisa ou outra, não existindo negociação possível.

A experiência de Mickael/Laure demonstra, talvez, o contrário. Por um lado, existe uma bagagem da experiência anterior da protagonista sobretudo na forma de vestir e na escolha de elementos e brincadeiras que tem a ver com o universo masculino, ao lado da própria proximidade com o pai. Por outro, é a experiência concreta dele/a que dá um sentido generizado e transgenerizado para o conteúdo do filme. Em outras palavras, a barreira entre as meninas-molecas, que se divertem com brincadeiras de meninos e usam roupas mais masculinas ou unisex, e as meninas transgênero pode ser muito mais fluída do que o olhar do que o espectador pode esperar.

O filme, conteúdo, parece referendar uma experiência de transgenerismo por em alguns momentos fundamentais: na escolha persistente de um nome próprio, na opção deliberada por roupas masculinas, e até mesmo na adequação do corpo que era possível de ser realizada para uma criança com menos de dez anos. Sensível, o filme não disfarça os momentos de tensão e de repressão, mas sem carregar demasiadamente nas cores. Neste sentido, é interessante a fala da mãe, ao desmascarar a farsa da filha: “eu não estou fazendo isto para punir você. Mas eu não sei mais o que fazer. Se você tiver uma ideia melhor, diga agora mesmo”. O leva o telespectador a pensar, também, sobre o quanto arranjos binários são limitadores dos sujeitos que passam por experiências divergentes da norma, como naqueles que se relacionam com eles.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 17 de Outubro de 2013

Shortbus (2005)

Um filme desconcertante. Esta talvez seja uma definição possível para Shortbus (2005), película dirigida por John Cameron Mitchell, também diretor de Hedwig and the angry inch (2001). Rodado em cores fortes, o foco do longa são as trajetórias individuais de casais, gays ou não, em busca da satisfação de desejos pessoais reprimidos em contraste com os limites e traumas muitas vezes auto-impostos. Alguns em busca da felicidade, outros da salvação, ou de prazer, ou calor humano visitam a boate/cabaré Shortbus.

Numa New York de papel machê, o que fica em relevo são as fragilidades humanas, medos e neuras que persistem e frequentemente afetam a busca pela felicidade no presente. Este foi o caso da “protagonista” do longa, Sofia (Sook Yin-Lee), terapeuta de casais eternamente em busca do orgasmo; ou de Jamie (PH DeBoy) e James (Paul Dawson), casal gay marcado pela carência de confiança ao lado do excesso de cuidado; ou ainda Severin (Lindsay Beamish), prostituta dominatrix incapaz de se sentir realmente conectada com outras pessoas.

Numa proposta de tentar abordar as diferentes formas de amor, sem problematizar número de integrantes de uma relação, fetiches, diferenças etárias, etc., o filme pode ser entendido como um chamado pela busca do amor como prática, do encontro e afeto pelo outro e por si mesmo apesar de todas as limitações – e não em busca de aspirações ou representação impossíveis, contidas em fórmulas batidas.

Publicado originalmente no Núcleo UniSex, em 16 de Outubro de 2013

Um toque de Rosa: culturas, identidades e conflitos.

Eu vi um jovem gracioso na mesquita
lindo como a lua quando ela aparece.
Aqueles que o veem curvando-se para orar dizem:
“todos os meus desejos são que ele se prostre ainda mais”

(TORRÃO FILHO, 2000, p. 100)

Um toque de rosa (2004) foi uma surpresa relativamente agradável. A referência que eu tinha era a de um filme bobo, bastante açucarado e sem maiores problemas. Superficial, era o tipo de película para passar na sessão da tarde, na medida para um público adolescente. As discussões dos temas levantados pelo filme prometiam ser superficiais e mereceriam pouca atenção. Ledo engano. Por muito que não tenha sido um filme visceral, diversas discussões interessantes perpassam pelo filme.

O longa girou em torno da vida de Alim (Jimmy Mistry), um jovem e talentoso fotógrafo de origem paquistanesa e canadense, mas que vive em Londres com o noivo, Giles (Kristen Holden-Ried). Longe da família e falando o mínimo possível com os parentes tradicionalistas, Alim parece senão confortável, ao menos resignado com a separação (inclusive geográfica) entre estas duas instâncias da sua vida: a identidade de um jovem gay numa das cidades mais diversas do mundo, e a de um imigrante canadense de origem paquistanesa, parte da comunidade muçulmana egressa deste país. Este jogo, embora aparentemente harmônico, foi bastante tenso para o personagem, que inclusive criou uma espécie de ideal de comportamento: Alim, durante todo o filme, foi guiado em suas ações pelo espírito de Cary Grant, galã e ídolo hollywoodiano. Contudo, mais do que figura paterna, contraposta à mãe dominadora, Cary Grant encarna os valores de tolerância aparente e masculinidade da cultura ocidental. Ao ouvir um fantasma, o conflito de Alim se tornou muito claro ao telespectador: situado numa fronteira cultural entre valores herdados de um patrimônio coletivo identitário e o desejo homoerótico que não seria acolhido pela cultura paquistanesa. Daí tanto a fuga de Alim do Canadá, o seu desejo por Londres, como o desejo de separar as duas instâncias de sua vida, positivando o presente com a identidade “ocidental” e negativando o passado com a identidade “muçulmana”.

Esta frágil arrumação começou a se desfazer quando a mãe de Alim, Nuru Jahan, decidiu visitar o filho – motivada pelo noivado do sobrinho e os muitos questionamentos da comunidade sobre seu próprio filho que vivia distante e aparentemente sem seguir o script da vida de um bom crente: obter uma profissão reconhecida, casar-se e ter muitos filhos. Ela decide, pois, fazer pela segunda vez o caminho para a capital londrina, onde havia morado quando jovem, logo após enviuvar.

A chegada iminente da mãe colocou Alim em crise: recorreu ao seu “anjo” Cary Grant, e decidiu ocultar da mãe sua sexualidade, gostos e a vida de casal com Giles, seu namorado. A relação com Giles, nesta parte da película, se tornou mais complexa: por um lado, o namorado aparece como um contraponto plenamente integrado à cultura ocidental, apaixonado por Alim e disposto a ajudar o namorado no que puder, mesmo acreditando que a relação deles não deveria ser oculta, mas sim revelada para a mãe dominadora de Alim. Seguro de si e bonito, Giles apareceu como um sedutor – tanto de Alim como de sua mãe, Nuru, em momentos diferentes do filme, apesar de manter uma fidelidade rigorosa em relação à Alim. Apesar de ter encarado a situação com um bom humor desconcertante, Giles frequentemente encarou as demandas de Alim no que diz respeito às particularidades da cultura paquistanesa como questões menores, quase como caprichos bobos aos quais ele aceitava de maneira condescendente por amor ao namorado. Se em parte este comportamento foi inspirado pela verdadeira “desarrumação” da sua vida, já que passou da condição de namorado a de colega de quarto sem cerimônias, em parte este comportamento se explicaria por uma dificuldade em Giles de colocar os valores do namorado e da mãe no mesmo patamar que os seus próprio. A leitura que terminou fazendo foi a partir dos seus próprios valores, e não do caráter imperativo que os valores muçulmanos tinham (ao menos em certa medida) sobre Nuru, e, por extensão, sobre Alim. Assim, num certo momento do filme Giles e Nuru passaram um dia maravilhoso em Londres. Sedutor, Giles colocou Nuru no centro de um mundo fictício, feito de sonhos, desejos e memórias cinematográficas; o ponto alto deste “recomeço” – já que Nuru havia sido extremamente grosseira com Giles nos dias anteriores – foi quando partilharam uma garrafa de champanhe em um navio e turismo no rio Tâmisa. Nuru então abriu espaço para aquele que ela acredita ser um amigo de Alim, contanto as mágoas que tem com a capital inglesa, problemas na relação com o filho, e o que a moveu a buscar contato com ele em Londres: que ele se case com uma boa garota, e que retorne para o Canadá para assistir ao casamento do primo, etapa importante não apenas na vida de um muçulmano, mas também no seu papel e na posição de sua família dentro da comunidade. Viúva e longe do filho, Nuru gozava de uma posição desconfortável no Canadá justamente pela ausência de Alim, já que não pode capitalizar os sucessos do filho em seu benefício, nem cuidar dele e ajuda-lo a escolher uma boa esposa. De resto, o filme mostra com sagacidade os problemas da relação entre pais de países orientais com filhos que “fazem a América” (ou mais precisamente, o Ocidente europeu norte-americano) e terminam não apenas incorporando valores, mas assumindo demandas que são estranhas às gramáticas culturais nas quais se socializaram. Não se trata de dizer que uma cultura não possui determinado problema, ou não trata de determinada questão, como a homossexualidade ou o homoerotismo. Mas a solução que é culturalmente possível, em muitos casos, não apenas é divergente da ocidental como também parece despida de qualquer lógica ou humanidade. Foi neste terreno e transitando entre imperativos que no mais das vezes parecem inconciliáveis, que Alim precisou fazer as escolhas de vida que aparecem no filme como dadas – mas que na realidade, parecem dadas apenas quando a chave de tolerância e aceitação da homossexualidade é claramente possível. Psicologicamente, isto inclusive explica Cary Grant: em certa medida foi pelo olhar de seu “anjo” que Alim se tornou inteiro, integrado, unificando suas identidades discordantes num todo minimamente coerente (HALL, 2011, p. 32).

Observados estes detalhes, ficou evidente a enorme tensão apresentada num dos momentos mais importantes do filme: quando Nuru descobriu que Alim e Giles eram noivos, sua reação foi de choque e rejeição. Mas a reação de Alim em relação à tranquilidade e até satisfação de Giles também foi bastante hostil: ele compreendia as expectativas frustradas e o impacto que a revelação de sua sexualidade e vida afetiva e amorosa teriam sobre a mãe e a posição e Nuru na comunidade. Mas também compreendia que a tensão que fora aparentemente unificada pelo olhar de Cary Grant era frágil e estava novamente descolada. Alim a princípio se colocou numa posição de rejeição tanto da mãe como da sua própria cultura, tentando se apegar a posição que mantivera até ali. Sua opção, porém, foi duramente repreendida por Giles. Afinal, se ele dizia que a mãe era meramente uma paquistanesa atrasada, o que era ele próprio senão um paquistanês atrasado se fazendo passar por algo mais? Aqui, ficou evidente o limite que a empatia de Giles lhe permitia: por um lado, empático com a mãe de Alim e incomodado com o preconceito que este emprestava a sua mãe; mas por outro infantilizando as reações de seu namorado e de sua mãe, que eram exageradas. Para um gentleman inglês, aquilo parecia meramente um erro de comunicação e drama por uma questão de menor importância. Aqui o alto, loiro forte e sedutor Giles encarnava curiosamente alguns dos filmes apreciados por seu amado Alim: ele se parece bastante com a figura do heroico colonizador em filmes como Gunga Din, destinados ao elevado papel de civilizar os bárbaros ocidentais. Este filme, citado pelo fantasma de Cary Grant como uma película para acalmar Alim, possui uma das construções mais caricatas e infantilizadoras sobre os súditos do império britânico colonial na Índia (SILVEIRA, 1996. p. 191). Mesmo que seja uma coincidência, explicita a imagem que o Ocidente criou sobre o Oriente, com o propósito de um elogio da dominação (SAID, 2008, p. 25) – e que parece compartilhada tanto por Giles quanto pelo fantasma de Cary Grant, sendo o primeiro a sedução do soft power, e o segundo a  dominação mais clara e simples, evidenciada nos filmes tão apreciados por Alim – e também por sua mãe, Nuru, que viveu em Londres na juventude com o objetivo de se igualar as heroínas que via nas telas do cinema.

O terço final do filme, aproximadamente, se passou no Canadá, quando Alim decidiu participar do casamento do primo e tentar pelo menos uma aproximação com a mãe. Abalado com o fim do relacionamento que fora precipitado por Giles, Alim parecia ao mesmo tempo saudoso do senso de comunidade que parece então evidente no casamento, e incomodado com sua participação, que despertava curiosidade nos vizinhos. Acostumado a um respeito quase obrigatório da privacidade pelos fleumáticos ingleses, a curiosidade – que é a norma de uma sensibilidade diferente da ocidental – desconcertou Alim, que aceitou participar do ritual de despedida de solteiro do primo, mesmo que na defensiva. A razão ficou explícita algumas cenas depois, quando o primo de Alim, Khaled (Raoul Bhaneja) presença ausente mais incômoda para o telespectador, já que encarnaria um modelo de masculinidade e do papel social do homem, se revelou como uma fraude. Apesar de estar se casando, no dia da despedida de solteiro ele revelou sua atração por homens, e o desejo de transar com o primo. Caindo de bêbado, Khaled também demonstrou a solução que dá a relação entre religião e sexualidade: o casamento só poderia ser realizado com uma mulher, destinada a lhe dar muitos filhos e netos aos seus pais. Os homens são para a busca do prazer sexual, mas não para o casamento, noivado, laço afetivo. O fato de Alim não entender esta verdade aparentemente elementar foi o motivo de seu afastamento do local e do sofrimento decorrente daí. O que Khaled não imaginava foi à chegada de Nuru, que ouviu a conversa e a confissão do sobrinho modelar, que havia inclusive pago pela sua viagem para Londres. A tensão de Alim se tornou, então, evidente para a mãe, inclusive do ponto de vista das escolhas, do afastamento e do amor que seu filho devotava ao namorado. Ao mesmo tempo, a solução que Khaled dava para as demandas de sua sexualidade e o seu papel na comunidade foi apresentada como uma opção hipócrita e despida de significado verdadeiro. Contrasta tanto com o amor divergente de Giles e Alim, como com o amor convergente de seus próprios pais ou de sua tia e falecido tio. Khaled encarnou, no filme, a realidade dura que a devotada mãe de Alim não via ou fingia não ver: que a homossexualidade não é fruto da convivência com a cultura ocidental, ou uma dimensão à qual o Islamismo (no sentido das diferentes comunidades islâmicas pelo mundo) responda de forma multiforme. Na não-aceitação da homossexualidade existem graus distintos e soluções distintas. Inclusive, soluções de tolerância e espaço para a traição e relações marginalizadas, que a comunidade e as esposas optam por não ver. Este trecho do filme, aliás, ecoa a obra de Pasolini, As mil e uma noites onde um poeta muçulmano africano tem uma posição de destaque que não se desfaz ou foi corroída devido ao relacionamento explícito entre ele e três rapazes. Historicamente, a relação entre a homoafetividade e o Islamismo não se reduz a configuração contemporânea; em verdade, existiu uma ambivalência e até mesmo momentos de tolerância (TORRÃO FILHO, 2000, p.p. 98-104), à qual o filme pareceu dar espaço. O poema da epígrafe, neste sentido, um ótimo exemplo. Dada à segregação de gênero no ambiente da mesquita, apenas um homem poderia dizer aquelas palavras e apreciar um rapaz, belo como a lua, em suas orações.  O fato de ter ocorrido em solo sagrado demonstra uma relativa tolerância em relação ao desejo de um homem por um rapaz. E este é um dos exemplos mais pudicos da poesia homoerótica na Espanha muçulmana. Esta ambivalência não está apenas temporalmente situada no passado, ela é um subproduto da nossa contemporaneidade, especialmente no caso de enclaves de origem cultural e social distintas, como no caso da comunidade paquistanesa no Canadá. O reverso da atração exercida por um ocidente como local de oportunidades, e que levou a ondas de imigração foi à demanda de negociar entre as identidades herdadas do passado, e as opções de identidades distintas que eram possíveis no novo contexto, sobretudo nos países que formam o centro do capitalismo global (HALL, 2011, p. 88). E isto vale, inclusive, para as identidades que são propostas a partir de novas possibilidades de viver o homoerotismo, no caso de Alim.

Deste trecho em diante, o filme caminhou rapidamente para o final: ocorreu o casamento, no qual o fantasma de Cary Grant apareceu vestido com as roupas típicas do estereotipo do colonizador, tentando aconselhar Alim; mas o personagem parece menos perdido entre as identidades sobrepostas de homem muçulmano e gay. Prova deste fato foi o beijo publico entre Alim e Giles, em pleno casamento do primo, numa cena que embora seja condizente com a proposta de uma comédia romântica, foi extremamente pouco verossímil. Menos pelo beijo, e mais pela reação de incomodo decoroso da comunidade, que não reagiu ao gesto de carinho homoafetivo do casal, que, reconciliado, se retirou da festa, seguidos de Nuru que explica enigmaticamente a irmã a razão de sua própria saída. A personagem não se sente confortável em compartilhar da hipocrisia aparente da festa, que ocultava a sexualidade de Khaled e referendava seu papel na comunidade.

Alim e a mãe terminam por se reconciliar de uma forma não muito clara. Nem Alim nem Nuru chegam a um consenso se o conjunto de ofertas que a cultura ocidental faz aos personagens foi bom ou ruim. Mas parecem concordar que a solução não é nem um pouco simples: por um lado, a decorosa viúva começou a rever suas escolhas, inclusive no plano afetivo. E a encarar com uma naturalidade misteriosamente adquirida em poucos momentos a relação homoafetiva de seu filho. Já Alim assumiu uma posição mais autônoma na condução de sua própria vida. Terminou por aceitar a sobreposição de identidades, no lugar da segregação territorial e emotiva que mostrava no começo do filme:

O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas a um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda história sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu”(…) A identidade plenamente unificada, completa, segura, e coerente é uma fantasia. (HALL, 2011, p. 13)

Por fim, assumindo que a “crise de identidade” podia encetar novas soluções potenciais para um relacionamento homoafetivo, Alim se sentiu seguro o suficiente para desistir da tutela incômoda de Cary Grant, seguindo a vida com Giles. Esta opção representou, contudo, algo mais. Numa época de globalização, não é de admirar que as identidades sobrepostas procurem uma resposta que hierarquize e segregue menos. Em outras palavras, que Alim deixe de lado as respostas de Cary Grant, recendentes ao imperialismo mesmo que com a melhor das intenções. Queria ou não, Alim operou e opera com duas identidades distintas de maneira simultânea.  Cabe a ele transigir, colar, negociar as diferentes condições as quais ele se costura com a sociedade, em perpétua ligação – e não negação – com o passado, a tradição, a cultura. Na modernidade tardia líquida, esta opção não é sem sentido ou alienada: mas é uma possibilidade, inclusive, de resistir a uma posição de total alinhamento, seja em direção ao dogmatismo (no caso, religioso) ou ao niilismo. Contraditório, a mensagem mais interessante com o personagem Alim é a da administração das diferenças. No labirinto das identidades, é preciso não se deter numa parede sólida, mas procurar a possibilidade de outros caminhos em direção ao diálogo e a tolerância.

Referências:

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na pós-modernidade. 11ª Edição. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2011. 102 p.

TORRÃO FILHO, Amílcar. Tríbades galantes, fanchonos militantes. Homossexuais que fizeram história. São Paulo: Edições GLS, 2000. 294 p.

SAID, Edward. Prefácio da edição de 2003. In: Orientalismo.  O oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008. p.p. 11-26.

SILVEIRA, Renato da. Simba, o leão sanguinário: Revolta dos Mau Mau, cultura e marketing político. O Olho da História, v. 1, n.3, p. 191-216, 1996.

 

Desejo Proibido (If These Walls Could Talk 2, EUA, 2000)

If these walls could talk 2, título original do filme Desejo Proibido é uma obra que trata do amor entre mulheres através do tempo. Tendo por base as vicissitudes de casais lésbicos que viveram na mesma casa durante cinquenta anos, o filme mostrou com humor e delicadeza as maneiras como a homossexualidade foi vivida por alguns e enquadrada por outros ao longo deste período. Protagonizado por nomes de peso, como Vanessa Redgrave e Sharon Stone, além da presença da apresentadora americana Ellen DeGeneres, o filme funcionou bem como um chamado a reflexão sobre sexualidades e preconceitos.

O primeiro momento, que se passou no começo dos anos 1960, retratou os dilemas de Edith (a magistral Vanessa Redgrave) que perdeu sua esposa de toda a vida, Abby (Marian Seldes) e precisou lidar com a dor da perda ao lado da invisibilidade e do preconceito contra sua orientação sexual. O curta tem dois momentos, por assim dizer, interligados pela sequência da morte de Abby no hospital: o primeiro mostra o mundo seguro que as duas haviam criado em sua residência, afastada de olhos curiosos; o segundo, o desmonte deste mundo seguro pelo sobrinho e herdeiro de Abby, Ted, acompanhado de sua própria família. Em pauta a crueldade tremenda de se negar a união homossexual e por consequência falta de direitos e insegurança jurídica que daí decorre. De certa forma, o tom sombrio de tragédia esteve em consonância com a geração dos anos 1950 e começo dos 1960, marcada pelo medo da guerra mundial e um recrudescimento dos costumes à luz do macarthismo e da rejeição de tudo que fosse sequer um pouco dissonante de rígidos padrões morais.
O segundo momento teve lugar nos anos 1970. Desta vez, o foco foi um grupo de amigas lésbicas, estudantes da universidade e que se identificavam com os ideais do nascente movimento feminista, passando a questionar a condição de mulheres e de padrões de comportamento que são impostos ao gênero feminino. O filme se torna mais interessante quando uma delas, Linda (Michelle Williams) se apaixona por uma lésbica que se veste e se comporta como homem, chamada Amy (Chlöe Sevigny) para desagrado das amigas que viam neste jeito de ser mais masculinizada uma forma de opressão que precisava ser algo a ser combatida e deixada de lado. O preconceito, assim, foi demonstrado no filme tanto no movimento feminista que rejeitou o grupo de amigas em função de sua homossexualidade, sobretudo quando elas se recusaram a permanecer numa condição de invisibilidade; quanto entre as próprias amigas de Linda que tiveram um olhar preconceituoso sobre as lésbicas que usavam roupas, gestos e hábitos associados ao masculino.

O terceiro curta-metragem, ambientado nos anos 2000, retratou os dilemas de Fran e Kal (respectivamente Sharon Stone e Elle DeGeneres) um casal que desejava ter filhos e passou a lidar com problemas associadas à formação de famílias por casais GLBTTT, fosse com doadores que não teriam contato nenhum com a criança, fosse à eleição do melhor sêmen de um banco, fosse ainda a dilemas existenciais mais abstratos: Fran lamenta que a fecundação de Kal seja algo que requeira planejamento tão preciso, e não apenas um acidente, fruto de uma noite de amor; ou ainda a tristeza de Kal de trazer uma criança a um mundo repleto de preconceitos.

Em seu conjunto, tratou-se de uma obra consistente, embora desigual na qualidade dos curtas: os dois primeiros, pela proximidade temporal e pelo nó de transformações sociais que englobam as décadas de 1960 e 1970 dialogam entre si com enorme sucesso. O primeiro curta-metragem coloca em pauta questões como importantes e que tocam de perto o século XXI: o preconceito contra homossexuais tanto na modalidade direta, numa cena na qual Edith e Abby vão ao cinema e são vítimas dos risinhos de jovens; quanto institucional, quando o Estado não ofereceu qualquer garantia social para Edith, que viu o lar e seu mundo despedaçado com a morte da parceira, sem puder buscar qualquer forma de auxílio ou reconhecimento de direito. Outro tema que foi colocado em pauta e que permaneceu em discussão no universo GLBTTT é o da vida de gays maduros e idosos. A sensação de perda, no caso de Edith é devastadora não apenas pela perda em si, como pela impossibilidade de expressar, compartilhar e vivenciar seu luto em qualquer esfera de sua comunidade: seja na interação com funcionários do hospital, ou pessoas passando por situação semelhante até a família, todo laço de afeto que construiu foi silenciado em nome de dolorosa proteção da invisibilidade.

O preconceito retratado na primeira parte do filme adquiriu uma natureza diferente no segundo curta-metragem. Ele se matiza, e passa a ser percebido não apenas nas instituições sociais como universidade ou movimento feminista; mas individualmente, dentro de cada um e cruzado com preconceitos de classe, por exemplo, em diálogo ora harmônico ora tenso com as diversas identidades que a modernidade permite que sejam assumidas (HALL, 2011, p. 19-20). O grupo de lésbicas marginalizado pelo movimento feminista também marginalizou aquelas que frequentavam um bar (descrito como uma espelunca) e que não correspondiam ao seu padrão de mulher e na forma de se vestir. Neste sentido, o debate sobre conservadorismo e revolução que esteve no cerne da contracultura nos anos 1960 e explode em 1968 ganhou outros contornos: houve movimentos do Maio de 1968 que mais tarde assumiram uma mensagem reformista (e até mesmo conservadora) com razoável grau de sucesso. O movimento feminista que marginalizou as lésbicas parece representar este grupo (Remónd, 1983). Isto não implica um juízo de valor, mas sim que pelo menos em certos setores do movimento feminista a aceitação era condicionada a certos critérios – no caso, orientação sexual.

O terceiro filme foi o menos bem amarrando dos três. A razão é simples: primeiro, passaram-se quase quarenta anos entre o segundo e o terceiro curta-metragem. Assim, foi mais difícil reconhecer o mesmo debate dos primeiros. O preconceito apareceu, mas dando a entender ser muito mais fraco do que nos anos 1960 e em 1970. Nisto reside talvez um problema do filme: retratar as transformações do preconceito pensando não em de que forma ele se tornou mais sofisticado ou sutil; mas sim do ponto de vista otimista (ainda que não sem razão) de que ele teria se tornado mais fraco. Como o casal termina sendo construído de forma mais “quadrada” – monogâmico, socialmente bem de vida, com acesso a bens e serviços que exigiriam alto poder aquisitivo, no que parece a adoção do pink money – os dilemas são menos salientes neste curta.

Na sua totalidade, porém, mereceu ser assistido. Pela atuação inspirada de Vanessa Redgrave no primeiro filme, que comunicou toda a dor da perda de uma esposa ou de referências seguras, sem artificialidade ou exagero. E mais ainda pelas questões que o segundo curta lança de forma leve e bem humorada – mas que escondem, por exemplo, um chamado a autocrítica dos nossos próprios preconceitos, mesmo quando numa posição de marginalidade.

Referências:

HALL, Stuart. A Identidade cultural na pós modernidade. 11ª Edição. Rio de Janeiro: DP&A, 2011. 102 p.
RÉMOND, René. Seculo xx: De 1914 aos nossos dias. 3ª edição. São paulo: Cultrix, 1982. 3v.

(Artigo originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 24 de Julho de 2013)

A difícil caminhada de ser pai…e gay: Parte I

Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da manada
Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da man…
Ê, ê, ê, ê, ê,
Dona das divinas tetas
Derrama o leite bom na minha cara
E o leite mau na cara dos caretas

Acabo de ver na comunidade do Núcleo UNISex uma notícia sobre a reação raivosa de pessoas que comentaram as fotos de uma família na internet. As fotos não poderiam ser mais singelas – o casal arrumando o cabelos das filhas, diante de enfeites de natal, se abraçando, ou sentados no sofá. Cenas do cotidiano, enfim, que provavelmente são registradas por pessoas em diversos lugares do mundo, em cada momento.

Kaleb e Kordale parecem muito à-vontade nas fotos ou tanto quanto é possível com três filhos para criar. Em verdade, as cenas seriam perfeitamente banais. Um tipo de “foto ligeira” que se tira do celular quando a cena é tão hilária, sem pose, perfeição, photoshop ou o que seja. Verdadeiras janelas para o dia-a-dia de outras pessoas. A grande diferença, neste caso, era o fato de que o papel era desempenhado por… dois homens.

Recentemente, li um texto onde o autor defendia – com ótimos argumentos, sobretudo de ordem psicológica – que os relacionamentos entre famílias com pais do mesmo sexo ou do sexo oposto tem, essencialmente, os mesmos problemas. É um relacionamento, e estar em um relacionamento significa ter problemas e questões que são comuns a todos os relacionamentos. Com o devido respeito ao conhecimento do tema sob o viés psiclógico, que eu absolutamente não domino, acredito que existe uma diferença enorme entre os dois tipos de relacionamento.

Eles possuem pesos diferentes. Quando se foge do normal de alguma coisa, mesmo que apenas em um aspecto – no caso, das definições do sexo dos pais de família socialmente aceitas como hegemônicas ou hegemonizadas –  existe uma subversão que revela muitas coisas. Primeiro, demonstra o grau de construção de coisas que parecem muito “naturais”, com os pressupostos em torno da ideia família, a exemplo do lugar da mulher e mãe no cuidado das crianças. Papéis e expectativas perdem espaço, importância, lugar no caso de Kaleb e Kordale, onde o “cuidado dos filhos” parece essencialmente um problema para os leitores da foto, mas não para o casal. Segundo: gestos, fotos e cotidiano são performatizados dependendo da identidade sexual e de gênero de sujeito. Assim, quando de alguma forma passa a ser performatizado por um outro que foge aos atributos – digamos, o papel de pais de família por dois homens, como no caso de Kaleb e Kodale, homens e gays – as fotos ganham, como dito na reportagem  um grau de transgressão que para alguns é insuportável e inaceitável. Transgredindo, mostram que papéis sociais são construções que podem – e devem! – ser questionadas e revertidas. Provocam mal estar, ao revelar que de perto ninguém é normal. Se a grande estratégias das ideias que se querem hegemônias, e acima de tudo daqueles que lucram com elas é defender que existe normalidade\perfectibilidade e anormalidade\imperfectibilidade, e que as pessoas podem ser hierarquizadas em função disto – ou do grau de aproximação de um ou de outro extremo – .fotos como a de Kordale e Kaleb são um verdadeiro perigo. Mostram, enfim, o quanto a hegemonia se baseia mais na ignorância de outras possibilidades, e na verticalidade entre pessoas, que produzem desigualdades, preconceitos. E morte.

O que leva a propalada reação dos comentadores da foto. Num momento no qual a homoparentalidade está se tornando uma possibilidade visível e disível para os mais diferentes tipos de pessoas – sobretudo gays – a violência verbal e simbólica das reações – afinal, não podemos esquecer que é o cotidiano íntimo revelado – mostram que, quando os instrumentos mais sutis de coação de minoria falham, a violência é sempre um recurso possível. Violência legitimada pela religião, e por definições da fé de casamento e família. Violência baseada na letra fria e morta do que legisladores escreveram há séculos do tema. Violência baseada, não raras vezes, só no desconforto de não querer lidar com as diferenças e as diversidades.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em

Filmes, livros e a sexualidade na época clássica: o presente nas narrativas do passado.

Prefácio: este texto, escrito nos idos de 2008, apresenta grosso modo os problemas e a necessidade de um olhar crítico do telespectador sobre a representação associada à sexualidade na Grécia e Roma antigas. O texto contém alguns problemas de simplificação e alguns equívocos menores, que optei por não suprimir, ou fazê-lo o mínimo possível. O principal é tratar tanto da idade clássica quanto do tempo presente como generalidade – embora tenham especificidades e peculiaridades que tornam a generalização pouco desejável. Não obstante, mantenho o formato original pelo valor didático.

É um costume na área de história dizer frequentemente que obras de ficção situadas no passado dizem mais a respeito do nosso próprio tempo do que a respeito do passado em si[1]. Isto pode ser verificado com alguma facilidade: quantas vezes as falas de personagens de livros ou filmes parecem ser diretamente retiradas de um discurso feminista ou democrático? Pululam “mulheres devem ser livres” ou ainda “o rei deve zelar pela felicidade e ouvir os desejos de seus súditos”. Esta tendência, quando exagerada, resulta no anacronismo, um dos maiores equívocos para o historiador: atribuir ao passado demandas, expectativas e significados que pertencem ao presente. Para o historiador, nada pode ser atemporal: tudo, rigorosamente, está situado dentro de uma experiência de tempo que nos atinge no mais íntimo e aparentemente “natural” que nos cerca. Isto inclui, evidentemente, a sexualidade.

Frequentemente, filmes que tratam da antiguidade, sobretudo a grega e romana tomam algumas atitudes complicadas no que toca a sexualidade; uma delas pode ser resumida como a sexualidade reprimida, com modelos de casamento e famílias nucleares, linguagem que parece ter sido retirada de manuais de etiqueta vitorianos, e personagens perniciosos que estes sim são sexualmente depravados; a outra é a sexualidade exuberante, presente em absolutamente todos os momentos da vida e em todos os lugares – mesmo onde seria de se esperar austeridade, como o recinto dos templos ou o centro do poder.

Estes posicionamentos são repletos de problemas e questões que dizem mais a respeito de nós mesmos do que da experiência de sexualidade vivida pelos gregos e romanos antigos. Senão vejamos o primeiro caso: a sexualidade toma um modelo de família, aliado a noções como privado (espaço do exercício da sexualidade) e público (espaço onde ela não pode ser exercida) e projeta isto para antigas sociedades. É quase como se um “pudor vitoriano” cercasse as películas e os livros tratando destes povos, como revelam alguns filmes a exemplo de “Spartacus (1960)”.

Um bom exemplo envolve a noção de amor romântico. Ela surge constantemente, até mesmo em escravos, como é o caso do filme “Spartacus” tanto em sua versão de 1960 e de 2003. Pareceria pouco provável a um romano do século II a.C., que porventura assistisse ao filme que o amor entre os escravos se colocasse naqueles termos de devoção – supondo, até mesmo no caso de Espártaco, fidelidade matrimonial, sendo que eles sequer eram casados. Não é que amor e fidelidade não existissem: mas se pautavam por outros termos era exigida em outros termos. No caso dos romanos, por exemplo, o casamento prescindia do amor e a fidelidade era exigida da mulher uma vez que os filhos de homem deveriam ser legítimos. Ou no caso grego, temos a Ilíada de Homero: o rapto de Helena não é causa de uma guerra por ser uma traição ao casamento; os próprios deuses conspiraram para que ocorresse! O amor de Páris, inclusive, tem origem divina e não na pessoa de Helena. Muito mais importante era o desrespeito às normas de hospitalidade por parte de Páris e à aliança entre os príncipes gregos. Mas este aspecto mais “político” parece de somemos importância em Helena de Tróia (2003) onde o amor romântico entre ambos ganhou espaço. O mesmo se pode dizer a respeito de Tróia (2004).

Não raro, a homossexualidade é banida e transformada em algum tipo de íntima amizade despida de qualquer conotação erótica como a que cerca Aquiles e Patróclo em Tróia, respectivamente Brad Pitt e Garrett Hedlund. Teoricamente, isto tornaria o filme mais “palatável” [2], mesmo que a custo de uma deformidade histórica, já que pululam exemplos de pares de amantes guerreiros presentes inclusive em instituições públicas da pólis, como o Batalhão Sagrado da cidade-Estado de Tebas[3]. Alguns autores dizem que não há base no texto homérico para dizer que Aquiles e Patróclo eram amantes. Pode ser que não existam, mas os gregos e romanos antigos os citavam como modelos para o relacionamento entre dois amantes. Inclusive, existiam peregrinações a seus túmulos.

A outra posição pode parecer mais progressista. A sexualidade é proclamada, e a antiguidade parece ser o paraíso perdido da sexualidade livre de repreensão de quem quer que seja. Em alguns filmes, ao lado desta representação da sexualidade, o destino dos que a exercem e experimentam parece ser trágico ou pelo menos repleto de arrependimentos.

Superficialmente, parece ser o caso de filmes como Calígula (1980), de Tinto Brass, que escolho como caso exemplar. O filme retrata a vida do terceiro César[4] que passou á história como um tirano sanguinário e depravado sexual, que cometera incesto com sua irmã e tivera milhares de amantes de ambos os sexos; que interrompe casamentos para deflorar donzelas indefesas, e não raro seus próprios maridos.

Tal visão sobre este personagem histórico tem como fonte principal um livro importante, e que deve ser contextualizado cuidadosamente. É a famosa Vida dos Doze Césares[5] de Caio Suetônio Tranquilo. Escrita quase um século após a morte de Calígula, a obra carrega um profundo tom de moralidade e de reprovação do seu autor ao que ele chama de “excessos” dos Césares. Pouco se sabe sobre as razões que levaram Suetônio a escrever daquela maneira – além de uma literatura anterior que realmente propunha um modelo de conduta moral que deveria ser seguido. Entretanto, no contexto daquela época as ações de Calígula podiam ser moralmente reprováveis, mas não eram de maneira alguma incomuns. Pode-se pensar que era até mesmo generalizada, como sugere a leitura de obra como o Satiricon[6] de Petrônio, ou os famosíssimos grafites de Pompéia, conservados pelas cinzas do Vesúvio[7]. Para entender criticamente o lugar da sexualidade, a questão deve necessariamente ultrapassar a figura de Calígula: individualmente ele poderia ser ou não o demônio pintado na obra de Suetônio, mas de forma alguma isto se dá em função de sua sexualidade em si, mas sim do exercício que fere as normais morais daquela época. Ora, estas normas não parecem próximas das normas que existem em nossa época. A sexualidade modelar hoje que não admite carícias entre homens. Não era desta forma na antiguidade clássica, por mais natural e atemporal que possa parecer aos incautos. Da mesma maneira, e com mais agudez, na antiguidade clássica a pederastia era parte da educação do jovem cidadão da Pólis, e foi exaltada em mais de uma obra[8].  De forma que o estranhamento e a reprovação moral que o filme parece conter secretamente – afinal, basta ver o destino sangrento de Calígula como consequência não de todas suas atitudes como soberano, mas como fruto de sua depravação moral e sexual. Suetônio inclusive rejeitou centenas de anos atrás, esta hipótese monista: a queda de Calígula tem diversas razões, nas quais seus excessos ligados à sexualidade tem seu papel. Em suma: o filme guarda uma mensagem que a o destino de Calígula é marcado pela retribuição pela sua conduta, sobretudo a sexual e aguardaria a quem se dedicasse aos excessos daquela forma. Ora, este é um conteúdo que não possui grande ligação com a época. Os trapaceiros de Petrônio terminam o livro razoavelmente bem – escapando de um destino trágico nas mãos dos cortonianos, inclusive Gitão, o jovem pederasta amante de ambos os protagonistas. Muito diferente é o destino de Esporo, morto junto com seu senhor, Nero.

De forma que querendo fugir dos quadros mentais de nossa época, o filme termina revelando o mesmo tipo de amarra que os que representam a família nuclear comum no nosso presente, e a instituição pública e privada do casamento como o ponto central da sociedade e sua norma – mesmo que o imperador Augusto tenha sido obrigado a editar leis que incentivassem o casamento, que começava a parecer menos interessante a elite romana.

O objetivo não é criticar o filme em si. Sequer é o de exigir fidelidade histórica de obras de entretenimento. O historiador é preso a esta amarra que visa impedir que ele deforme o passado ao seu bel prazer, ou seja desonesto em relação a ele. O diretor de cinema, o editor, o escritor não possui este liame. A liberdade é a imaginação, não os registros históricos que nos chegaram de determinada época. O objetivo é propor ao leitor a necessidade de uma leitura crítica sobre os filmes, e a lembrança que numa película não é possível se dizer que “era assim naquela época” ou “que foi assim”. A história não é tão simples.

Trata-se, quem sabe, de fazer um adendo como fez o diretor italiano Fellini: quando filmou o Satiricon, em 1969: o título original não é Satyricon, ou Satyricon de Petrônio. Mas sim o Satyricon de Fellini, apenas baseado na obra escrita por Petrônio no século I. a diferença pode ser pequena no título e sutil (sutileza que a tradução brasileira não manteve) mas não deixa de ser menos importante.

(Publicado no Núcleo UNISex em 28 de dezembro de 2012)


[1] Sintetetizada por Marc Bloch, quando lembra do provérbio árabe: “os homens se parecem mais com seu tempo do que com seus país”. Ver: Bloch, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

[2] O palatável é irônico: parece ser uma estratégia para justificar a homofobia, satisfazer um mercado homofóbico, ou ambos.

[3] Citado por TORRÃO FILHO, Amílcar. Tríbades Galantes, fanchonos militantes. Homossexuais que fizeram história. São Paulo: Edições GLS, 2000.

[4] Após a morte de Caio Júlio César, o primeiro César da História, o nome passou a designar grosso modo a figura do soberano romano. Ele tinha outros títulos, como o de Pai da Pátria e Imperator (chefe do exército).

[5] Suetônio. Vida dos Doze Césares. 5ª Edição. São Paulo: Atena, 1956. Biblioteca Clássica.

[6]Ver: Petrônio. Satiricon. São Paulo: Abril Cultural, 1981. 207p.

[7] FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Cultura popular na Antiguidade Clássica: grafites e arte, erotismo, sensualidade e amor, poesia e cultura. São Paulo: Contexto, 1989. 80p.

[8] O caso mais famoso, naturalmente, é O Banquete. Ver PLATÃO. O Banquete.  Porto Alegre: L&PM Pocket, 2008. Na época da escrita deste texto, usei uma edição da Martin Claret, que desaconselho por conta de pontos pouco claros da tradução. A de Donaldo Schüler conta com tradução, notas e comentários que são preciosos. Ver sobretudo as páginas 41-51. Sobre a pederastia, o livro de divulgação organizado por Paul Cartledge, História Ilustrada da Grécia Antiga, trata do assunto em dois boxes: nas páginas 195-6 e 282-3. Apesar de não ser uma obra muito profunda, tem o mérito de resumir sumariamente alguns aspectos da relação entre erástes e erómenos. Ver: Cartledge, Paul. História Ilustrada da Grécia Antiga. Rio de Janeiro: Ediouro, (S.D.).