A Igreja católica e o movimento LGBTT em tempos de Francisco

Ao longo do último ano, desde a ascensão do Papa Francisco, as comunidades LGBTT mundo afora se surpreenderam e continuam a se surpreender com a posição de diálogo que o chefe da igreja católica adotou. A abertura parece ir além da mera intenção individual de “quem sou eu para julgar” e começa timidamente a se estender a outras esferas. Exemplo disto é que poucos dias atrás uma comissão da arquidiocese de São Paulo divulgou uma nota em defesa da dignidade da comunidade LGBTT, rapidamente seguida de uma nota da instituição que a posição da instituição e da comissão não necessariamente são iguais.

Muitos amigos meus aprovaram com cautela, seguida de surpresa e até mesmo de franca animação com as declarações do Papa e de outras figuras na hierarquia católica. Parece, a alguns, que existe quase uma vontade real de discutir e de tolerar, deixando de lado a retórica da condenação – ao menos de forma imediata. Certamente, um ponto que conta a favor da interlocução.

Contudo, creio que é necessário refletir a respeito de alguns pontos. A possível caminhada da Igreja católica em direção a tolerância de sujeitos LGBTT como membros mais ou menos plenos da Igreja nunca pareceu tão possível, como evidenciam os grupos que defendem a diversidade católica. Mesmo assim, é preciso pensar um pouco antes de criar expectativas de um futuro em que a Igreja “evolua” para a plena aceitação da identidades sexuais e de gênero que são divergentes na sociedade.

Necessário ter em mente que a Igreja católica possui quase dois mil anos. Nenhuma instituição sobrevive por tanto tempo sem de alguma forma tentar incorporar aos seus quadros ou acoplar a sua existência a movimentos de expansão social, de enriquecimento, de conquista. Ressalvada a guarda de alguns elementos que são centrais para a doutrina religiosa católica, como a impossibilidade da ordenação de mulheres, adaptações são possíveis. Usando a consequência lógica de um dos princípios da história, as instituições participam de uma negociação dos termos de dominação com os subordinados (THOMPSON, 2005, p.p. 18-19). Está incluído aí o processo de incorporação a determinada ordem, que se flexibiliza em alguma medida para acolher rebeldias tanto quanto possível. E creio ser possível usar este raciocínio para compreender a Igreja católica, sua atuação e seus afagos: o imperativo é manter a ordem na cidade de deus, o que implica enfrentar problemas como a evasão de fiéis e a modernização da igreja.

Um dos caminhos para manter a ordem na casa, e permitir que a Igreja sobreviva numa posição de importância na contemporaneidade é lidar com temas sensíveis, a exemplo da homossexualidade, pensando menos naquilo que separa gays, lésbicas, trans, queers, e Igreja católica, e mais nas possibilidade de acomodar fiéis LGBTT. Em lugar da condenação, a possibilidade de ingresso ou de diálogo. Não se sobrevive dois mil anos sem fazer concessões, e o debate a ser travado entre o catolicismo institucional e comunidades de gays, lésbicas e trans pelo mundo deve ter esta clareza.

Mas o avanços do debate não devem ser superestimados, e o cuidado não pode ser colocado à parte. Os sinais em direção ao diálogo carecem de medidas mais concretas, em primeiro lugar. E é a partir destas é que seria possível tentar entender até que ponto a Igreja católica está disposta a ir. Um bom exemplo: a aceitação de famílias homoparentais, e a concorrente retirada de apoio político a parlamentares fundamentalistas. Mais: a criação de pastorais LGBTT’s diocesanas, iniciativa que foi solicitada por exemplo pelo GGB em agosto de 2013 e que ainda não tem resposta do Arcebispo de Salvador.

Não é minha intenção soar pessimista ou atacar a Igreja católica, antes pelo contrário. Merecem ser saudadas algumas das atitudes tomadas no último ano. Mas é necessário não tomar coelho por lebre. Tolerância não é aceitação, e a distribuição de lugares pode ser bem menos igualitária do que a retórica parece sugerir. Pode ser que aja um cristão sentado no trono de São Pedro, digno de seu homônimo reformista são Francisco de Assis (KÜNG, 2013, passim). Mas eu gostaria de ter sempre em mente que Francisco de Assis era filho de um rico mercador.

Vou me permitir encerrar o texto com uma metáfora: no período colonial, era hábito das igrejas – a Santa Casa de Misericórdia da Bahia é um bom exemplo – separar os fiéis na Igreja conforme a cor, lugar social e riqueza. Pessoas pobre e de menos status sentavam cada vez mais distante do altar e do púlpito. É preciso tomar cuidado para não acreditar que a oferta de diálogo equivale a um convite para se sentar, de mãos dadas, na primeira fila dos bancos da Igreja. Talvez a mentalidade não seja tão distante assim na cabeça dos bispos católicos reformistas. E o lugar reservado seja mais para o fundo, perto das portas de entrada e de saída.

*Este texto é devedor de uma conversa com Gésner Braga no começo de 2014, comentado os acenos  papa Francisco aos gays. Agradeço ao amigo às provocações que me deram a ideia do texto.

Referências:

THOMPSON, Edward Palmer. Introdução. In: ________. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das letras, 1998.

KUNG, Hans. O papa Francisco é um paradoxo? In: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/520253-o-papa-francisco-e-um-paradoxo-artigo-de-hans-kueng. Acesso dia 08 de mai de 2014

“Quem sou eu para julgar os gays”. Conversa do Papa com os jornalistas. In: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/522300-quem-sou-eu-para-julgar-os-gays-entrevista-com-o-papa-francisco. Acesso dia 08 de mai de 2014.

Comissão da arquidiocese doz apior tema da parada gay de São Paulo. In:http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/05/1448062-comissao-da-arquidiocese-apoia-tema-da-parada-gay-de-sp.shtml. Acesso dia 05 de mai de 2014;

TALENTO, Biaggio. GGB pede Pastoral Gay para Arquidiocese de Salvador. In: http://atarde.uol.com.br/materias/1522652/?mais_votados=1. Acesso dia 21 de mai de 2014.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 19 de junho de 2014

A difícil caminhada de ser pai e ser gay: Parte II

Depois de algumas semanas, retomo o tema de Janeiro. Desta vez, tentarei dar conta de dois fenômenos. O primeiro diz respeito aos comentários sobre a foto de Kaleb e Kordale, o casal gay com duas filhas que tanto furor causou algumas semanas atrás – e que, como de hábito, foi esquecido pela Internet.

Um dos grandes problemas na argumentação dos leitores, sobretudo brasileiros, era a dificuldade de conceber como aquela união poderia caber dentro do conceito de família. Numa sociedade ainda profundamente influenciada por valores cristãos e patriarcais famílias homoparentais tem o potencial de mostrar as fraturas da ideia compartilhada que diversos setores de sociedade fazem do que seja família.

Não se trata de dizer que a sociedade não absorve famílias diferentes do padrão marido\trabalho esposa\lar e filhos. Desde muito antes da lei do divórcio mulheres ocupam o papel de chefes de família, não raro com uma autoridade que se sobrepõe, inclusive, a do marido. Agora, em termos de ideias de família, as estratégias narrativas resultaram, historicamente, por valorizar uma família nuclear e patriarcal. Sancionada pelo direito civil pelo menos até 2002, e por valores morais desde então. Basta colocar como exemplo um diálogo para ilustrar este ponto: ao falar de transgressões de uma jovem, as distintas senhoras reunidas lembravam que a maior culpada era a mãe. Além de liberal, trabalhava fora e negligenciava seu papel maior, de guia moral da família, sobretudo das filhas. Inclusive reprimindo, quando necessário, comportamentos que parecem indesejáveis ou fora do padrão. Voltarei a isto mais embaixo.

De qualquer forma, o incômodo de Kaleb e Kordale é mostrar que existe felicidade e satisfação além dos estreitos contornos dos ideias socialmente difundidos e tornados hegemônicos ou passíveis de hegemonização nas sociedades – sobretudo na nossa. Trocando em miúdos: o mal estar de uma família que desconstrói papéis sociais e os organiza em termos diferentes revela que existem outras possibilidades de família, sem abdicar de amor, afetividade e felicidade.

Na coluna passada eu disse que a hegemonia se baseia na ignorância. Ignorância leva a raiva, a raiva ao medo, e o medo ao sofrimento e a morte. Consequência irreversível da dificuldade de equacionar família, homossexualidade e aceitação levou aos comentários contra as fotos de Kaleb e Kordale. Sejam travestidos de desejo de preservar a privacidade do casal e das famílias, como se esta ideia não tivesse uma esfera de publicidade; seja na forma de violência explícita, uma das quais chocou o Brasil nos últimos dias, e levou a uma carta emocionada do deputado federal Jean Wyllys. Um pai matou o filho a pancadas para que ele aprendesse a ser homem. Matou a sangue frio, sem se importar com a aniquilação do futuro de uma criança. Tudo em nome de um ideal de paternidade e de masculinidade que são opressores. Não apenas para homossexuais: mas também para heterossexuais, muitos dos quais se comoveram com o crime. O comportamento do pai precisa ser colocada em correlação com as palavras de pessoas como o deputado Federal Jair Bolsonaro, para quem a cura para meninos femininos são as agressões. Muito bem, deputado. Este possível eleitor carioca seguiu a sua cartilha. Agora talvez seja necessário esperar a sua resposta a este crime!

O que une a experiência do jovem Artur, brutalmente morto por seu pai e a de Kaleb, Kordale e suas filhas? Algo muito simples. O primeiro é a prova maior do quanto o modelo de família que passava pela cabeça dos críticos de Kaleb e Kordale, que tentam instruir sobre o que é próprio do “ser homem” e “ser mulher”, punindo duramente seja de forma física ou psicológica as transgressões é problemático e precisa ser repensado. Quais as características centrais para um modelo de família? Ensinar uma filha a ser mulher e um filho a ser homem, ou transmitir amor, carinho, compreensão e, acima de tudo, aceitação? O segundo, com o exemplo de Kaleb e Kordale é mais esperançoso: a possibilidade de ser diferente e de transcender preconceitos está ai. É preciso ter coragem para viver estas novas possibilidades, e lutar para que elas sejam implementadas. Lutar com o voto, lutar para ter uma família feliz, lutar para que instituições como escola ou comunidade se adequem a estas novidades. E ter esperança.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 03 Abril de 2014

Entre nós: Uma comédia sobre a diversidade

Por Daniel Silva & Paulo Duarte

Entre nós, comédia dirigida e escrito por João Sanches é um texto magistral. Partindo de uma provocação sobre o tema da diversidade sexual – entendida como e diversidade de práticas sexuais, mas, sobretudo, de afetividades – o espetáculo gira em torno da descoberta do amor entre dois adolescentes, típicos (ou nem tanto) estudantes de ensino médio. Aliás, o grande mérito do texto parte daí: uma brincadeira inteligente com esteriótipos. Narrado da perspectiva de um rapaz “perfeito”, popular, esportista, bonito, estudioso chamado Rodrigo (Igor Epifânio), que se descobre apaixonado pelo misterioso, mimado, sarcástico e discreto Fabinho (Anderson Dy Souza). A partir daí, o texto se desenvolve em torno das tentativas desajeitadas por parte de Rodrigo para chamar a atenção e conquistar o amor de Fabinho, com os atores se revezando em interpretar outros personagens, um mais hilário que o outro.

Passando por descrições bem-humoradas de situações que grande parte dos jovens gays passaram – como por exemplo perder a virgindade, a pressão familiar e dos amigos para ter uma namorada, o espetáculo tem o mérito de criar empatia entre o público e o dilema dos personagens. Numa das cenas mais hilariantes do espetáculo, o pai de Rodrigo leva-o ao bordel de Dona Carmem, desejando que o rapaz perca logo a virgindade numa casa de luz vermelha com a mesma senhora que desvirginou todos os homens da família. Longe de criar algum incômodo do público, as fugas de Rodrigo – primeiro de Dona Carmem e depois de uma colega que força pra se tornar sua namorada, Larissa são acompanhadas de uma evidente simpatia do público.

Aliás, o público desempenha um papel importante no espetáculo. Os atores interagem com eles muita vezes de forma direta, explicando atitudes uns dos outros e, até mesmo, deixando a cargo do público o desfecho do romance. Este é um ponto fundamental no sucesso do espetáculo, especialmente quando se leva em consideração que o público inicial do espetáculo era formado por estudantes de escolas públicas de Salvador. Levando o tema da diversidade sexual ao palco, colocando como protagonistas jovens gays, a equação da homofobia é revertida: de comportamento normal ou socialmente aceito, a homofobia passa a figurar como um problema sério. Tanto como preconceito que leva a agressão e sofrimento – a vítima foi o personagem Fabinho – como reveladora de questões subterrâneas: o espetáculo em alguma medida referenda a ideia de que a homofobia tem como causa um ódio irracional dos próprios desejos, corporificado na agressão daqueles que, ao viver, colocam em questão uma identidade arduamente construída. Este certamente é o segundo grande mérito do espetáculo. Sem deixar de lado o tom de comédia por meio da acentuação dos traços mais caricatos dos personagens não protagonistas (como Bruno, o homofóbico com ciúmes do relacionamento de Rodrigo e Fabinho, ou a mãe super-protetora de Fabinho, Margarete), a diversidade sexual se coloca em dialética com a homofobia, inclusive a que ocorre em vários níveis. Se o ponto alto deste tema no espetáculo é a agressão, a atuação da diretora do colégio e da orientadora coloca em evidência a dificuldade que as escolas têm ao lidar com a diversidade justamente nas figuras representativas de autoridade e aconselhamento. Sobretudo ganha contornos importantes a tentativa de ocultamento, sob a rubrica da “confusão dos desejos” acompanhada de uma imprescindível discrição, reveladas respectivamente pela diretora e pela orientadora.

Mas há mais com outro grande mérito do espetáculo. Os personagens dos pais de Fabinho e Rodrigo, a despeitoo de um grau excessivo de ingerência na vida dos rapazes, ganham o público pela aceitação dos filhos. Em verdade, a grande preocupação de Margarete é que o filho tenha uma namorada que dispute o seu lugar de única mulher da casa; já o pai de Rodrigo, mesmo com a tentativa de garantir que o filho perca a virgindade com a experiente Dona Carmem, coloca o amor paterno acima da orientação sexual do filho.

Com este binônio – a escola como espaço de normatização do corpo e das sexualidade, e a família como espaço de expectativas que cedem lugar a graus de aceitação – Entre Nós constrói habilmente o microcosmo onde jovens – ou não tão jovens – gays tiveram as primeiras descobertas e experiências da sexualidade.
Contando com a participação de Leonardo Bittecntourt, guitarrista que abre o espetáculo com a música Ouvidos ao mistérios, de Leonardo Cavalcanti, e realiza efeitos de som no palco ao longo do show para ressaltar momentos de tensão ou de romance, o espetáculo é um prato cheio para pessoas de todas as idades. Inteligente sem deixar de ser compreensível, permite que o espectador coloque em perspectiva pressupostos que parecem muito bem estabelecidas, mas que na realidade se fazem mais por senso comum e preconceito do que por funcionar como algo compartilhado por todos. Espetáculo sobre a diversidade, esta não é apresentada como algo externo, coisa de teoria de professor ou de escola: mas como algo do cotidiano, que precisa ser reconhecido e respeitado no outro – e em si mesmo.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 5 de março de 2014

Pink money, Parte I

O cenário é uma grande livraria da cidade de Salvador. Público certo, cotidiano, agitado e diverso dentro de quem pode frequentar aquele tipo de estabelecimento.  Gente apressada, gente com tempo, gente correndo atrás de presentes ou de entretenimento. Pessoalmente, nada a fazer por ali exceto esperar pelas compras da minha carona – e ler alguma coisa de passagem.

Sem muita paciência pra livros amplos ou difíceis, passeio muito pra lá e pra cá. Passo na parte de história, claro, quando vejo uma pequena prateleira com livros de temáticas GLS. Tremenda surpresa, naquele canto esquecido na livraria (que parece bem ordenada: bestselers > literatura > filosofia > história > GLS, entre filosofia e história). Folheio muito interessado os livros. Bastante literatura picante, alguns livros informativos. Algo de psicologia, e um livro com esquetes do Tom of Finland. Um rapaz ao meu lado olha num tom meio especulativo para mim, talvez chocado ou estimulado com a capa do livro.

Mas a questão que fica mais ou menos incômoda pelo resto do dia é esta: porque este lugar na livraria? Porque tão escondida? Porque aquele tipo de literatura? Porque tantos autores homossexuais e gays, ou com trabalhos nesta temática – fico apenas com Wilde ou Kenneth J Dover que não estão por lá – não tem espaço nesta pequena prateleira? Ou, posto de outra forma, que tipo de lógica governa esta ordem dos espaços dentro de uma livraria?

Neste caso, alguns pontos parecem bastante claros. Um, é inegavelmente um passo a frente colocar uma prateleira de temática GLS/LGBTT numa grande livraria. Dois: autores consagrados ou acadêmicos que tenham temática homossexual não entram nestas prateleiras. São relegados a lugares mais visíveis. Mesmo quando o livro desenvolve uma análise sobre a homossexualidade, parece existir algum tipo de segregação. Como se apenas quando a temática gay fosse um rótulo irremovível (sem chances para “literatura”, ou “história”) é que deva ser colocado naquela prateleira. Terceiro, o local é bem particular. Entre história e filosofia, dentro do campo das humanidades. Pouca produção? Pouca procura? Um pouco dos dois, talvez? Respostas em aberto.

Em tempos onde o Pink Money começa a interessar empresários no Brasil, pouco me admira que as pessoas tentem surfar nesta onda, lucrando poderosamente com o jogo das identidades no presente. Os elementos que podem ser significados como partes do pertencimento determinado ideal – marcas de cuecas, sungas, óculos, tipos de música e em menor grau literatura e cinema – também integram este jogo. Neste meio tempo, a visibilidade pode vir de duas “raízes”, por assim dizer. Uma delas é a da tolerância pragmática, devido ao dinheiro. Comprar a leniência, silêncio ou assentimento do outro, por assim dizer. A outra talvez tenha origem numa aceitação da diversidade – onde o particular integra, questiona e transforma o modelo. Acharia pobre estar num relacionamento com um gay machista. Também acho pobre privilegiar produtos que reproduzam pura e simplesmente estereótipos – como o machismo da frase anterior. Ambas podem ser encontradas, creio, no Pink Money – ou em prateleiras de produtos direcionados.

Mas há mais. Não estou defendendo a supercompartimentalização. Eu não compraria um livro ou objeto somente porque seu autor é gay. Nem acho que todos os produtos elaborados com esta temática devem estar dentro da prateleira GLS da livraria (ou da caixinha)… Mas gostaria que a divisão não fosse de tantos extremos, entre o tudo e o quase nada. Claro, num tempo onde o processo de construção identitária ainda está em negociação estas dicotomias são compreensíveis – mas não creio que devemos nos deixar levar por ela. Gostaria, talvez, que a temática GLBTT/GLS mobilizasse tanto as obras da livraria quando subtemas relevantes a exemplo de literatura fantástica ou direito administrativo mobilizam.

Apenas uma lembrança. Um dos primeiros lugares onde encontrei livros com temática GLBTT de todos os tipos – histórica, filosófica, literária e erótica – foi à livraria Grandes Autores, que ficava em Ondina a menos de vinte metros do meu colégio. Depois da aula, corria pra lá e fazia minhas leituras clandestinas em pé na prateleira, morrendo de medo da próxima página de um romance gay e da chegada de um colega de sala. Mas foi nesta mesma prateleira que vi pela primeira vez obras como os devassos no paraíso de Trevisan, ou os tríbades galantes, fanchonos militantes de Torrão Filho. Quase dez anos atrás a livraria deu lugar a um banco do Brasil. Numa grande livraria ou sebo, nunca mais vi qualquer literatura ou estante gay. No máximo, uma de erotismo/sexualidade/sexologia. Agora eu vejo, e fico com minha cisma. O que mudou?

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 26 de Novembro de 2013

Não podemos nos dar o luxo de vender barato os nossos votos

Não podemos nos dar o luxo de votar de forma inconsciente. De não pensar um pouco antes de apertar os dedos na urna eletrônica. De refletir, cuidadosamente, no candidato que escolhemos. Não podemos ser um eleitorado invisível, estatístico do Datafolha e do Ibope. Seria um luxo demasiado caro para os homossexuais brasileiros.

Hesitei muito em começar a escrever esta crônica, e mais ainda na publicação. Lidar com política e com as opções políticas de cada um não é nem um pouco fácil. Por um lado, não é o mais popular dos temas fora de alguns lugares comuns (pérolas de Feliciano ou alguma decisão judicial); por outro, existem interesses de natureza diversa que governam a escolha de um político ou de outro, independente da orientação sexual e da identidade, gay ou não.

Contudo, acho necessário sinalizar a importância que a participação na política, institucional ou não, tem para os cidadãos LGBTT como um todo. Por uma razão muito simples: ainda é necessário lutar, arduamente e de forma cotidiana para sobreviver num contexto social onde a homofobia é constante – seja de forma velada, seja de forma explícita. Os políticos homofóbicos, sobretudo os da bancada evangélica/religiosa e seus apaniguados, ao lado dos apregoadores da governabilidade, nesta conjuntura são verdadeiros inimigos da plena cidadania para sujeitos LGBTT. E inadvertidamente, o voto destes mesmos cidadãos frequentemente podem eleger políticos homofóbicos.

Neste sentido, dois episódios são sintomáticos, um na política nacional e outro na política municipal. O primeiro diz respeito às polêmicas em torno do licenciamento de Marta Suplicy (PT-SP), relatota do PLC 122 entre 2009 e 2012, o famoso projeto que dispõe sobre a criminalização da homofobia. Ao ser indicada ministra da cultura, Marta Suplicy cedeu a vaga ao suplente de senador Antonio Carlos Rodrigues (PR-SP), católico praticante e abertamente contra o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e a legislação de que trata o projeto. Para desespero do movimento LGBTT em todo o país, prometeu inclusive militar contra o projeto, em entrevistas amplamente divulgadas pela mídia:

“Vou seguir sempre as posições da Igreja Católica nas votações. Para mim homem é homem e mulher é mulher. Também sou contrário ao aborto e à eutanásia”, afirmou nesta quarta-feira (12) o vereador paulistano, após uma sessão na Câmara Municipal marcada pelas homenagens dos colegas ao novo senador por São Paulo.” [1]

Tal agenda política causou um enorme mal-estar entre os eleitores da senadora Marta Suplicy, tida como tradicionalmente alinhada com o movimento LGBTT. Parecia absurdo que a saída de uma aliada, com trânsito no executivo e no legislativo desse lugar a um retrocesso de tal ordem: afinal, assumiu a cadeira um parlamentar, que, num estado que se intitula laico, promete votar de acordo a suas convicções religiosas, e não ao interesse comum e menos ainda de grupos minoritários. Mas o mais absurdo é que as centenas de milhares de votos recebidos por Marta Suplicy agora são representados por um político que está, evidentemente, em total descompasso com a agenda política pró-direitos LGBTT da senadora. Afinal, os dois são membros de partidos com agendas opostas, já que o PT defende algum tipo de reformismo social, enquanto o PR assume neste aspecto uma orientação conservadora.[2] A lógica que prevaleceu, pois, não foi em torno da coerência de projetos, ou minimamente, de princípios: mas em torno da governabilidade nas casas legislativas federais, representada pela chapa entre PT e PR. A lição que fica para o eleitor LGBTT é a de vender seu voto muito caro, e sabendo claramente que ao optar por um aliado histórico, pode-se estar elegendo um inimigo futuro da mesma chapa.

A questão de um suplente com um conjunto de propostas totalmente oposto ao de Marta Suplicy e a de uma parte de seu eleitorado foi apenas um dos problemas naquele contexto. Havia outro, ainda mais grave. Com a relatoria em aberto, qualquer senador poderia se candidatar para a vaga, o que de fato ocorreu: ninguém menos que Magno Malta (PR-ES) pediu para assumir o cargo.[3] Não é preciso recuperar o histórico do senador para saber que a relatoria  de um projeto desta magnitude nas mãos de um dos líderes da bancada evangélica teria consequências perniciosas para os defensores da lei. Depois de uma reação da sociedade civil, a relatoria terminou nas mãos do senador Paulo Paim (PT-RS), e segue em tramitação. Ainda assim, durante três meses (setembro-dezembro de 2012) a questão ficou em aberto, e o governo federal demonstrou  que os direitos LGBTT certamente não entrar na hierarquia de prioridades. Enquanto na indicação de outros cargos e relatorias (entendidos como mais nobres – ou mais úteis) envolvem grande cuidado na indicação de seu ocupante, a questão aqui parece ter sido tratada de forma tosca, tacanha, sem inclusive algum espaço para que, antes do licenciamento, a senadora passasse a relatoria para um politico pró-direitos LGBTT.

Mas temos outro caso bastante relevante na política estadual em Salvador. O deputado estadual Pastor Sargento Isidório  filiado ao PSB (partido de esquerda com uma agenda de reformismo social e ao menos, simpatia pelos direitos LGBTT), provocou mal estar na assembleia legislativa e na câmara de vereadores ao usar a tribuna para a defesa da cura gay e das posições homofóbicas e racistas do deputado federal Marcos Feliciano (PSC-SP).[4] Isto gerou uma situação bastante complicada, já que apesar de o parlamentar ter se colocado num conflito quase sem conciliação com o programa do partido, que é de apoio aos direitos LGBTT, continou filiado ao PSB até meados de outubro de 2013, quando se filiou ao PSC sem a perda do mandato.
É necessário pensar, que durante este período votar num candidato do PSB, digamos, ao governo do Estado ou ao senado federal poderia significar dar espaço e trânsito a figuras como a do deputado pastor Sargento Isidório não apenas nos debates do legislativo, ou junto ao seu eleitorado: mas sim, inclusive, a possibilidade de intervir negativamente nas tímidas políticas estaduais para o segmento LGBTT. O voto, que deveria justamente ir para um partido minimamente alinhado com uma agenda pró-direitos, neste caso, serviria para eleger um político não apenas contrário, mas abertamente militante contra direitos a exemplo do casamento gay e da criminalização da homofobia. Com possibilidade, inclusive, de integrar comissões executivas que determinam políticas para este segmento no estado. Em suma: mesmo que na querela entre Isidório e o PSB o partido tenha mantido alguma coerência entre projetos pró direitos LGBTT e ações concretas, esta talvez seja resultado muito mais da importância atribuída as negociações políticas do que a estes direitos.

Um caso similar desponta nacionalmente neste momento, envolvendo também o PSB representado pelo seu candidato a presidência, Eduardo Campos (PSB-PE) e a ex-senadora Marina Silva, figura de proa do movimento político Rede Sustentabilidade – e abertamente contra o casamento LGBTT – embora a favor de algum tipo de união civil.[5] Se votar num presidente que vem de um partido ao menos simpático a uma agenda pró-direitos, a vice-presidente neste caso parece ser um problema – ou ao menos, um elemento a ser levado em consideração na equação. Afinal, num país com o histórico da eleição da chapa Tancredo Neves/José Sarney, quando o segundo assumiu a presidência pela morte do primeiro, ou Collor/Itamar Franco, quando o segundo assumiu a presidência pela renúncia do primeiro, parece razoável refletir sobre o papel dos vice-presidentes, mesmo que o bom-senso aponte para uma função mais cerimonial que efetiva. Vale ressaltar, no caso de Eduardo Campos/Marina Silva que tanto a cabeça de chapa não está claramente definida, como as intenções de voto em Marina Silva são maiores que as em Eduardo Campos – o que torna a suposta vice incomodamente capitalizada para negociar o que é prioritário, o que é importante e o que é meramente perfumaria, inclusive, dentro da lógica que foi demonstrada acima.

Não se trata, de maneira nenhuma, de fazer proselitismo de um ou outro partido: mas de pesar de forma adequada quais políticos que merecem os votos e quais não merecem. A equação não é simples: frequentemente, votar num candidato é votar numa chapa com políticos em completa ignorância dos direitos LGBTT, quando não em militância aberta e constante contra estes direitos. Devemos pesar muito bem e de forma consciente o menor dos males: votar num candidato alinhado com os direitos e políticas públicas LGBTT, mas sem uma chapa com um grande partido; ou votar num candidato alinhado, mas parte de uma chapa que pode transformar os direitos LGBTT numa questão de menor importância.

Cabe ressaltar, aqui, uma iniciativa interessante: é a cartilha LGBTT, que presta um serviço inestimável de mapear, na quase totalidade dos partidos nacionais, como se posicionam em relação aos interesses do segmento LGBTT, quais são as chapas, integrantes simpáticos ou hostis, etc. Disponível neste link.

 


[1] a questão teve ampla divulgação nos meios de comunicação nacionais e locais, a exemplo de: http://www.folhavitoria.com.br/politica/noticia/2012/09/suplente-de-marta-e-contra-seu-projeto-sobre-uniao-gay.html

[2] http://www.partidodarepublica.org.br/partido/historia_do_pr.html. Não farei nesta crônica uma digressão sobre o tema do conservadorismo contido em certas fórmulas. Apenas noto que, se o limite da liberdade individual é a natureza, basta inscrever afetividades divergentes como não naturais para manter o status quo, como o senador Magno Malta fez em seu site pessoal: http://www.magnomalta.com/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=2097:magno-malta-continua-contra-casamento-entre-homossexuais&catid=27:outras-notas&Itemid=45

[5] a rejeição de Marina Silva pelo casamento gay foi amplamente divulgada em diversos meios de comunicação: http://www.estadao.com.br/ noticias/nacional  ,marina-se-declara -contra-casamento-gay,560871,0.htm

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 17 de Outubro de 2013

A difícil caminhada de ser pai…e gay: Parte I

Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da manada
Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da man…
Ê, ê, ê, ê, ê,
Dona das divinas tetas
Derrama o leite bom na minha cara
E o leite mau na cara dos caretas

Acabo de ver na comunidade do Núcleo UNISex uma notícia sobre a reação raivosa de pessoas que comentaram as fotos de uma família na internet. As fotos não poderiam ser mais singelas – o casal arrumando o cabelos das filhas, diante de enfeites de natal, se abraçando, ou sentados no sofá. Cenas do cotidiano, enfim, que provavelmente são registradas por pessoas em diversos lugares do mundo, em cada momento.

Kaleb e Kordale parecem muito à-vontade nas fotos ou tanto quanto é possível com três filhos para criar. Em verdade, as cenas seriam perfeitamente banais. Um tipo de “foto ligeira” que se tira do celular quando a cena é tão hilária, sem pose, perfeição, photoshop ou o que seja. Verdadeiras janelas para o dia-a-dia de outras pessoas. A grande diferença, neste caso, era o fato de que o papel era desempenhado por… dois homens.

Recentemente, li um texto onde o autor defendia – com ótimos argumentos, sobretudo de ordem psicológica – que os relacionamentos entre famílias com pais do mesmo sexo ou do sexo oposto tem, essencialmente, os mesmos problemas. É um relacionamento, e estar em um relacionamento significa ter problemas e questões que são comuns a todos os relacionamentos. Com o devido respeito ao conhecimento do tema sob o viés psiclógico, que eu absolutamente não domino, acredito que existe uma diferença enorme entre os dois tipos de relacionamento.

Eles possuem pesos diferentes. Quando se foge do normal de alguma coisa, mesmo que apenas em um aspecto – no caso, das definições do sexo dos pais de família socialmente aceitas como hegemônicas ou hegemonizadas –  existe uma subversão que revela muitas coisas. Primeiro, demonstra o grau de construção de coisas que parecem muito “naturais”, com os pressupostos em torno da ideia família, a exemplo do lugar da mulher e mãe no cuidado das crianças. Papéis e expectativas perdem espaço, importância, lugar no caso de Kaleb e Kordale, onde o “cuidado dos filhos” parece essencialmente um problema para os leitores da foto, mas não para o casal. Segundo: gestos, fotos e cotidiano são performatizados dependendo da identidade sexual e de gênero de sujeito. Assim, quando de alguma forma passa a ser performatizado por um outro que foge aos atributos – digamos, o papel de pais de família por dois homens, como no caso de Kaleb e Kodale, homens e gays – as fotos ganham, como dito na reportagem  um grau de transgressão que para alguns é insuportável e inaceitável. Transgredindo, mostram que papéis sociais são construções que podem – e devem! – ser questionadas e revertidas. Provocam mal estar, ao revelar que de perto ninguém é normal. Se a grande estratégias das ideias que se querem hegemônias, e acima de tudo daqueles que lucram com elas é defender que existe normalidade\perfectibilidade e anormalidade\imperfectibilidade, e que as pessoas podem ser hierarquizadas em função disto – ou do grau de aproximação de um ou de outro extremo – .fotos como a de Kordale e Kaleb são um verdadeiro perigo. Mostram, enfim, o quanto a hegemonia se baseia mais na ignorância de outras possibilidades, e na verticalidade entre pessoas, que produzem desigualdades, preconceitos. E morte.

O que leva a propalada reação dos comentadores da foto. Num momento no qual a homoparentalidade está se tornando uma possibilidade visível e disível para os mais diferentes tipos de pessoas – sobretudo gays – a violência verbal e simbólica das reações – afinal, não podemos esquecer que é o cotidiano íntimo revelado – mostram que, quando os instrumentos mais sutis de coação de minoria falham, a violência é sempre um recurso possível. Violência legitimada pela religião, e por definições da fé de casamento e família. Violência baseada na letra fria e morta do que legisladores escreveram há séculos do tema. Violência baseada, não raras vezes, só no desconforto de não querer lidar com as diferenças e as diversidades.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em

Filmes, livros e a sexualidade na época clássica: o presente nas narrativas do passado.

Prefácio: este texto, escrito nos idos de 2008, apresenta grosso modo os problemas e a necessidade de um olhar crítico do telespectador sobre a representação associada à sexualidade na Grécia e Roma antigas. O texto contém alguns problemas de simplificação e alguns equívocos menores, que optei por não suprimir, ou fazê-lo o mínimo possível. O principal é tratar tanto da idade clássica quanto do tempo presente como generalidade – embora tenham especificidades e peculiaridades que tornam a generalização pouco desejável. Não obstante, mantenho o formato original pelo valor didático.

É um costume na área de história dizer frequentemente que obras de ficção situadas no passado dizem mais a respeito do nosso próprio tempo do que a respeito do passado em si[1]. Isto pode ser verificado com alguma facilidade: quantas vezes as falas de personagens de livros ou filmes parecem ser diretamente retiradas de um discurso feminista ou democrático? Pululam “mulheres devem ser livres” ou ainda “o rei deve zelar pela felicidade e ouvir os desejos de seus súditos”. Esta tendência, quando exagerada, resulta no anacronismo, um dos maiores equívocos para o historiador: atribuir ao passado demandas, expectativas e significados que pertencem ao presente. Para o historiador, nada pode ser atemporal: tudo, rigorosamente, está situado dentro de uma experiência de tempo que nos atinge no mais íntimo e aparentemente “natural” que nos cerca. Isto inclui, evidentemente, a sexualidade.

Frequentemente, filmes que tratam da antiguidade, sobretudo a grega e romana tomam algumas atitudes complicadas no que toca a sexualidade; uma delas pode ser resumida como a sexualidade reprimida, com modelos de casamento e famílias nucleares, linguagem que parece ter sido retirada de manuais de etiqueta vitorianos, e personagens perniciosos que estes sim são sexualmente depravados; a outra é a sexualidade exuberante, presente em absolutamente todos os momentos da vida e em todos os lugares – mesmo onde seria de se esperar austeridade, como o recinto dos templos ou o centro do poder.

Estes posicionamentos são repletos de problemas e questões que dizem mais a respeito de nós mesmos do que da experiência de sexualidade vivida pelos gregos e romanos antigos. Senão vejamos o primeiro caso: a sexualidade toma um modelo de família, aliado a noções como privado (espaço do exercício da sexualidade) e público (espaço onde ela não pode ser exercida) e projeta isto para antigas sociedades. É quase como se um “pudor vitoriano” cercasse as películas e os livros tratando destes povos, como revelam alguns filmes a exemplo de “Spartacus (1960)”.

Um bom exemplo envolve a noção de amor romântico. Ela surge constantemente, até mesmo em escravos, como é o caso do filme “Spartacus” tanto em sua versão de 1960 e de 2003. Pareceria pouco provável a um romano do século II a.C., que porventura assistisse ao filme que o amor entre os escravos se colocasse naqueles termos de devoção – supondo, até mesmo no caso de Espártaco, fidelidade matrimonial, sendo que eles sequer eram casados. Não é que amor e fidelidade não existissem: mas se pautavam por outros termos era exigida em outros termos. No caso dos romanos, por exemplo, o casamento prescindia do amor e a fidelidade era exigida da mulher uma vez que os filhos de homem deveriam ser legítimos. Ou no caso grego, temos a Ilíada de Homero: o rapto de Helena não é causa de uma guerra por ser uma traição ao casamento; os próprios deuses conspiraram para que ocorresse! O amor de Páris, inclusive, tem origem divina e não na pessoa de Helena. Muito mais importante era o desrespeito às normas de hospitalidade por parte de Páris e à aliança entre os príncipes gregos. Mas este aspecto mais “político” parece de somemos importância em Helena de Tróia (2003) onde o amor romântico entre ambos ganhou espaço. O mesmo se pode dizer a respeito de Tróia (2004).

Não raro, a homossexualidade é banida e transformada em algum tipo de íntima amizade despida de qualquer conotação erótica como a que cerca Aquiles e Patróclo em Tróia, respectivamente Brad Pitt e Garrett Hedlund. Teoricamente, isto tornaria o filme mais “palatável” [2], mesmo que a custo de uma deformidade histórica, já que pululam exemplos de pares de amantes guerreiros presentes inclusive em instituições públicas da pólis, como o Batalhão Sagrado da cidade-Estado de Tebas[3]. Alguns autores dizem que não há base no texto homérico para dizer que Aquiles e Patróclo eram amantes. Pode ser que não existam, mas os gregos e romanos antigos os citavam como modelos para o relacionamento entre dois amantes. Inclusive, existiam peregrinações a seus túmulos.

A outra posição pode parecer mais progressista. A sexualidade é proclamada, e a antiguidade parece ser o paraíso perdido da sexualidade livre de repreensão de quem quer que seja. Em alguns filmes, ao lado desta representação da sexualidade, o destino dos que a exercem e experimentam parece ser trágico ou pelo menos repleto de arrependimentos.

Superficialmente, parece ser o caso de filmes como Calígula (1980), de Tinto Brass, que escolho como caso exemplar. O filme retrata a vida do terceiro César[4] que passou á história como um tirano sanguinário e depravado sexual, que cometera incesto com sua irmã e tivera milhares de amantes de ambos os sexos; que interrompe casamentos para deflorar donzelas indefesas, e não raro seus próprios maridos.

Tal visão sobre este personagem histórico tem como fonte principal um livro importante, e que deve ser contextualizado cuidadosamente. É a famosa Vida dos Doze Césares[5] de Caio Suetônio Tranquilo. Escrita quase um século após a morte de Calígula, a obra carrega um profundo tom de moralidade e de reprovação do seu autor ao que ele chama de “excessos” dos Césares. Pouco se sabe sobre as razões que levaram Suetônio a escrever daquela maneira – além de uma literatura anterior que realmente propunha um modelo de conduta moral que deveria ser seguido. Entretanto, no contexto daquela época as ações de Calígula podiam ser moralmente reprováveis, mas não eram de maneira alguma incomuns. Pode-se pensar que era até mesmo generalizada, como sugere a leitura de obra como o Satiricon[6] de Petrônio, ou os famosíssimos grafites de Pompéia, conservados pelas cinzas do Vesúvio[7]. Para entender criticamente o lugar da sexualidade, a questão deve necessariamente ultrapassar a figura de Calígula: individualmente ele poderia ser ou não o demônio pintado na obra de Suetônio, mas de forma alguma isto se dá em função de sua sexualidade em si, mas sim do exercício que fere as normais morais daquela época. Ora, estas normas não parecem próximas das normas que existem em nossa época. A sexualidade modelar hoje que não admite carícias entre homens. Não era desta forma na antiguidade clássica, por mais natural e atemporal que possa parecer aos incautos. Da mesma maneira, e com mais agudez, na antiguidade clássica a pederastia era parte da educação do jovem cidadão da Pólis, e foi exaltada em mais de uma obra[8].  De forma que o estranhamento e a reprovação moral que o filme parece conter secretamente – afinal, basta ver o destino sangrento de Calígula como consequência não de todas suas atitudes como soberano, mas como fruto de sua depravação moral e sexual. Suetônio inclusive rejeitou centenas de anos atrás, esta hipótese monista: a queda de Calígula tem diversas razões, nas quais seus excessos ligados à sexualidade tem seu papel. Em suma: o filme guarda uma mensagem que a o destino de Calígula é marcado pela retribuição pela sua conduta, sobretudo a sexual e aguardaria a quem se dedicasse aos excessos daquela forma. Ora, este é um conteúdo que não possui grande ligação com a época. Os trapaceiros de Petrônio terminam o livro razoavelmente bem – escapando de um destino trágico nas mãos dos cortonianos, inclusive Gitão, o jovem pederasta amante de ambos os protagonistas. Muito diferente é o destino de Esporo, morto junto com seu senhor, Nero.

De forma que querendo fugir dos quadros mentais de nossa época, o filme termina revelando o mesmo tipo de amarra que os que representam a família nuclear comum no nosso presente, e a instituição pública e privada do casamento como o ponto central da sociedade e sua norma – mesmo que o imperador Augusto tenha sido obrigado a editar leis que incentivassem o casamento, que começava a parecer menos interessante a elite romana.

O objetivo não é criticar o filme em si. Sequer é o de exigir fidelidade histórica de obras de entretenimento. O historiador é preso a esta amarra que visa impedir que ele deforme o passado ao seu bel prazer, ou seja desonesto em relação a ele. O diretor de cinema, o editor, o escritor não possui este liame. A liberdade é a imaginação, não os registros históricos que nos chegaram de determinada época. O objetivo é propor ao leitor a necessidade de uma leitura crítica sobre os filmes, e a lembrança que numa película não é possível se dizer que “era assim naquela época” ou “que foi assim”. A história não é tão simples.

Trata-se, quem sabe, de fazer um adendo como fez o diretor italiano Fellini: quando filmou o Satiricon, em 1969: o título original não é Satyricon, ou Satyricon de Petrônio. Mas sim o Satyricon de Fellini, apenas baseado na obra escrita por Petrônio no século I. a diferença pode ser pequena no título e sutil (sutileza que a tradução brasileira não manteve) mas não deixa de ser menos importante.

(Publicado no Núcleo UNISex em 28 de dezembro de 2012)


[1] Sintetetizada por Marc Bloch, quando lembra do provérbio árabe: “os homens se parecem mais com seu tempo do que com seus país”. Ver: Bloch, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

[2] O palatável é irônico: parece ser uma estratégia para justificar a homofobia, satisfazer um mercado homofóbico, ou ambos.

[3] Citado por TORRÃO FILHO, Amílcar. Tríbades Galantes, fanchonos militantes. Homossexuais que fizeram história. São Paulo: Edições GLS, 2000.

[4] Após a morte de Caio Júlio César, o primeiro César da História, o nome passou a designar grosso modo a figura do soberano romano. Ele tinha outros títulos, como o de Pai da Pátria e Imperator (chefe do exército).

[5] Suetônio. Vida dos Doze Césares. 5ª Edição. São Paulo: Atena, 1956. Biblioteca Clássica.

[6]Ver: Petrônio. Satiricon. São Paulo: Abril Cultural, 1981. 207p.

[7] FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Cultura popular na Antiguidade Clássica: grafites e arte, erotismo, sensualidade e amor, poesia e cultura. São Paulo: Contexto, 1989. 80p.

[8] O caso mais famoso, naturalmente, é O Banquete. Ver PLATÃO. O Banquete.  Porto Alegre: L&PM Pocket, 2008. Na época da escrita deste texto, usei uma edição da Martin Claret, que desaconselho por conta de pontos pouco claros da tradução. A de Donaldo Schüler conta com tradução, notas e comentários que são preciosos. Ver sobretudo as páginas 41-51. Sobre a pederastia, o livro de divulgação organizado por Paul Cartledge, História Ilustrada da Grécia Antiga, trata do assunto em dois boxes: nas páginas 195-6 e 282-3. Apesar de não ser uma obra muito profunda, tem o mérito de resumir sumariamente alguns aspectos da relação entre erástes e erómenos. Ver: Cartledge, Paul. História Ilustrada da Grécia Antiga. Rio de Janeiro: Ediouro, (S.D.).