A difícil caminhada de ser pai e ser gay: Parte II

Depois de algumas semanas, retomo o tema de Janeiro. Desta vez, tentarei dar conta de dois fenômenos. O primeiro diz respeito aos comentários sobre a foto de Kaleb e Kordale, o casal gay com duas filhas que tanto furor causou algumas semanas atrás – e que, como de hábito, foi esquecido pela Internet.

Um dos grandes problemas na argumentação dos leitores, sobretudo brasileiros, era a dificuldade de conceber como aquela união poderia caber dentro do conceito de família. Numa sociedade ainda profundamente influenciada por valores cristãos e patriarcais famílias homoparentais tem o potencial de mostrar as fraturas da ideia compartilhada que diversos setores de sociedade fazem do que seja família.

Não se trata de dizer que a sociedade não absorve famílias diferentes do padrão marido\trabalho esposa\lar e filhos. Desde muito antes da lei do divórcio mulheres ocupam o papel de chefes de família, não raro com uma autoridade que se sobrepõe, inclusive, a do marido. Agora, em termos de ideias de família, as estratégias narrativas resultaram, historicamente, por valorizar uma família nuclear e patriarcal. Sancionada pelo direito civil pelo menos até 2002, e por valores morais desde então. Basta colocar como exemplo um diálogo para ilustrar este ponto: ao falar de transgressões de uma jovem, as distintas senhoras reunidas lembravam que a maior culpada era a mãe. Além de liberal, trabalhava fora e negligenciava seu papel maior, de guia moral da família, sobretudo das filhas. Inclusive reprimindo, quando necessário, comportamentos que parecem indesejáveis ou fora do padrão. Voltarei a isto mais embaixo.

De qualquer forma, o incômodo de Kaleb e Kordale é mostrar que existe felicidade e satisfação além dos estreitos contornos dos ideias socialmente difundidos e tornados hegemônicos ou passíveis de hegemonização nas sociedades – sobretudo na nossa. Trocando em miúdos: o mal estar de uma família que desconstrói papéis sociais e os organiza em termos diferentes revela que existem outras possibilidades de família, sem abdicar de amor, afetividade e felicidade.

Na coluna passada eu disse que a hegemonia se baseia na ignorância. Ignorância leva a raiva, a raiva ao medo, e o medo ao sofrimento e a morte. Consequência irreversível da dificuldade de equacionar família, homossexualidade e aceitação levou aos comentários contra as fotos de Kaleb e Kordale. Sejam travestidos de desejo de preservar a privacidade do casal e das famílias, como se esta ideia não tivesse uma esfera de publicidade; seja na forma de violência explícita, uma das quais chocou o Brasil nos últimos dias, e levou a uma carta emocionada do deputado federal Jean Wyllys. Um pai matou o filho a pancadas para que ele aprendesse a ser homem. Matou a sangue frio, sem se importar com a aniquilação do futuro de uma criança. Tudo em nome de um ideal de paternidade e de masculinidade que são opressores. Não apenas para homossexuais: mas também para heterossexuais, muitos dos quais se comoveram com o crime. O comportamento do pai precisa ser colocada em correlação com as palavras de pessoas como o deputado Federal Jair Bolsonaro, para quem a cura para meninos femininos são as agressões. Muito bem, deputado. Este possível eleitor carioca seguiu a sua cartilha. Agora talvez seja necessário esperar a sua resposta a este crime!

O que une a experiência do jovem Artur, brutalmente morto por seu pai e a de Kaleb, Kordale e suas filhas? Algo muito simples. O primeiro é a prova maior do quanto o modelo de família que passava pela cabeça dos críticos de Kaleb e Kordale, que tentam instruir sobre o que é próprio do “ser homem” e “ser mulher”, punindo duramente seja de forma física ou psicológica as transgressões é problemático e precisa ser repensado. Quais as características centrais para um modelo de família? Ensinar uma filha a ser mulher e um filho a ser homem, ou transmitir amor, carinho, compreensão e, acima de tudo, aceitação? O segundo, com o exemplo de Kaleb e Kordale é mais esperançoso: a possibilidade de ser diferente e de transcender preconceitos está ai. É preciso ter coragem para viver estas novas possibilidades, e lutar para que elas sejam implementadas. Lutar com o voto, lutar para ter uma família feliz, lutar para que instituições como escola ou comunidade se adequem a estas novidades. E ter esperança.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 03 Abril de 2014

A difícil caminhada de ser pai…e gay: Parte I

Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da manada
Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da man…
Ê, ê, ê, ê, ê,
Dona das divinas tetas
Derrama o leite bom na minha cara
E o leite mau na cara dos caretas

Acabo de ver na comunidade do Núcleo UNISex uma notícia sobre a reação raivosa de pessoas que comentaram as fotos de uma família na internet. As fotos não poderiam ser mais singelas – o casal arrumando o cabelos das filhas, diante de enfeites de natal, se abraçando, ou sentados no sofá. Cenas do cotidiano, enfim, que provavelmente são registradas por pessoas em diversos lugares do mundo, em cada momento.

Kaleb e Kordale parecem muito à-vontade nas fotos ou tanto quanto é possível com três filhos para criar. Em verdade, as cenas seriam perfeitamente banais. Um tipo de “foto ligeira” que se tira do celular quando a cena é tão hilária, sem pose, perfeição, photoshop ou o que seja. Verdadeiras janelas para o dia-a-dia de outras pessoas. A grande diferença, neste caso, era o fato de que o papel era desempenhado por… dois homens.

Recentemente, li um texto onde o autor defendia – com ótimos argumentos, sobretudo de ordem psicológica – que os relacionamentos entre famílias com pais do mesmo sexo ou do sexo oposto tem, essencialmente, os mesmos problemas. É um relacionamento, e estar em um relacionamento significa ter problemas e questões que são comuns a todos os relacionamentos. Com o devido respeito ao conhecimento do tema sob o viés psiclógico, que eu absolutamente não domino, acredito que existe uma diferença enorme entre os dois tipos de relacionamento.

Eles possuem pesos diferentes. Quando se foge do normal de alguma coisa, mesmo que apenas em um aspecto – no caso, das definições do sexo dos pais de família socialmente aceitas como hegemônicas ou hegemonizadas –  existe uma subversão que revela muitas coisas. Primeiro, demonstra o grau de construção de coisas que parecem muito “naturais”, com os pressupostos em torno da ideia família, a exemplo do lugar da mulher e mãe no cuidado das crianças. Papéis e expectativas perdem espaço, importância, lugar no caso de Kaleb e Kordale, onde o “cuidado dos filhos” parece essencialmente um problema para os leitores da foto, mas não para o casal. Segundo: gestos, fotos e cotidiano são performatizados dependendo da identidade sexual e de gênero de sujeito. Assim, quando de alguma forma passa a ser performatizado por um outro que foge aos atributos – digamos, o papel de pais de família por dois homens, como no caso de Kaleb e Kodale, homens e gays – as fotos ganham, como dito na reportagem  um grau de transgressão que para alguns é insuportável e inaceitável. Transgredindo, mostram que papéis sociais são construções que podem – e devem! – ser questionadas e revertidas. Provocam mal estar, ao revelar que de perto ninguém é normal. Se a grande estratégias das ideias que se querem hegemônias, e acima de tudo daqueles que lucram com elas é defender que existe normalidade\perfectibilidade e anormalidade\imperfectibilidade, e que as pessoas podem ser hierarquizadas em função disto – ou do grau de aproximação de um ou de outro extremo – .fotos como a de Kordale e Kaleb são um verdadeiro perigo. Mostram, enfim, o quanto a hegemonia se baseia mais na ignorância de outras possibilidades, e na verticalidade entre pessoas, que produzem desigualdades, preconceitos. E morte.

O que leva a propalada reação dos comentadores da foto. Num momento no qual a homoparentalidade está se tornando uma possibilidade visível e disível para os mais diferentes tipos de pessoas – sobretudo gays – a violência verbal e simbólica das reações – afinal, não podemos esquecer que é o cotidiano íntimo revelado – mostram que, quando os instrumentos mais sutis de coação de minoria falham, a violência é sempre um recurso possível. Violência legitimada pela religião, e por definições da fé de casamento e família. Violência baseada na letra fria e morta do que legisladores escreveram há séculos do tema. Violência baseada, não raras vezes, só no desconforto de não querer lidar com as diferenças e as diversidades.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em