Bent (1997)

Ficha Técnica:
Direção: Sean Mathias
Escrito por: Martin Sherman
Estúdio: Channel four
Duração: 104 minutos.

Sinopse: Max (Clive Owen) é um jovem e bonito, frequentador da noite gay da Berlim dos anos 1930 e namorado de Rudy (Brian Webber II) dançarino no lugar. Uma noite, ele se envolve com um membro das S.A., as tropas de assalto nazistas. Infelizmente, naquela noite Ernst Röhm, líder das S.A. e seus aliados foram eliminados sob os auspícios de Adolf Hitler. Max decide fugir junto com Rudy, mas termina capturado e levado ao campo de concentração de Dachau. Um vez ali, Max decide carregar a estrela amarela dos judeus em lugar do triângulo rosa que Horst (Lothaire Bluteau) usa orgulhosamente. A questão posta para Max e Horst é: como sobreviver ao campo de concentração sem permitir que aquele lugar termine destruindo a humanidade de seus prisioneiros?

Porque ver esse filme: Filmado em 1997, foi um dos primeiros longa-metragens a registrar a perseguição nazista aos homossexuais. Apesar de pontual, mostra o papel da violência como uma ferramenta de terror de Estado pela S.S. e pela Gestapo. Além disso, o processo de enraizamento do nazismo e do horror na sociedade alemã da época pode ser observado a partir da apatia que os personagens mostram em relação as transformações políticas do período. O desenvolvimento do afeto pelos personagens, marcado pela proibição do toque entre os prisioneiros também representa algumas das cenas mais bonitas do filme.

Temas e questões: Um dos maiores méritos do filme é apresentar uma reflexão extrema sobre a acomodação que a tolerância pode gerar em sujeitos desviantes. Afinal de contas, tanto Max como Rudy parecem muito pouco interessados nas transformações da política alemã naquele momento, o que termina por ter consequências muito negativas para o futuro de ambos.

Comentário (Spoilers): Bent foi baseado na peça do mesmo nome, que estreou em West End no ano de 1979, com ninguém menos que sir Ian Mckellen como protagonista. Na época, gerou uma tremenda reação por ter colocado em debate a quase desconhecida perseguição dos homossexuais durante o regime nazista. Ela foi representada na Broadway em 1980, protagonizada por Richard Gere e David Dukes, respectivamente como Max e Rudy.

O começo do filme possui alguns problemas. A opção que o diretor adota para retratar a vivência homoerótica em Berlim nos anos 1930, marcada pela promiscuidade e decadência, é bem questionável. É certo que a homossexualidade se confundia com a boemia durante boa parte dos primeiros quarenta anos do século XX e filmes como Christopher and his kind mostram esse universo amalgamado que era a noite berlinense pré-nazismo. Igualmente, o período de maior brilho e aceitação social de ideias progressistas, inclusive sobre a homossexualidade nos anos 1920 cedem espaço para pessimismo e crise sócio-econômica nos anos 1930. Contudo, a apresentação da maioria dos homossexuais do começo do filme como alienados, fúteis e ou promíscuos é incômoda. Esta impressão começa a ser desfeita com a personagem de Horst, que salva a vida de Max no trem para Dachau e usa o triângulo rosa com orgulho. Ele revela, inclusive, que foi preso por ter assinado uma petição para a libertação de Magnus Hirschfeld, um dos pioneiros dos direitos dos homossexuais, ativista pelos direitos civis de gays, lésbicas e trans e fundador do Instituto para o Estudo da Sexualidade, centro de estudos que visava desfazer preconceitos sobre o assunto, por meio do incentivo de pesquisas, atividades educativas, consultas médicas, tratamento endocrinológico para transexuais, etc. Vale ressaltar que em 1919 foi produzido um filme sobre o assunto, profundamente crítico ao código 175 do Código Criminal do Reich, que punia relações sexuais entre homens.

A segunda parte do filme, que retrata a vida em um campo de concentração e o conjunto de atividades sem sentido que visavam destruir a humanidade dos sujeitos considerados perigosos e problemáticos para o IIIº Reich é certamente a mais interessante e emocionante. Max suborna um dos guardas para que Horst trabalhe com ele carregando e organizando pilhas e pedras em diferentes lugares do campo de concentração. Uma vez juntos, os personagens têm a oportunidade de descobrir o verdadeiro significado de afeto, amor e sacrifício, e transformam o cotidiano numa luta constante para não enlouquecer e sobreviver resguardando a capacidade humana de amar.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 22 de Maio de 2015

Meu passado me condena (Victim, 1961)

Ficha Técnica:
Direção: Basil Dearden
Escrito por: Janet Green
Estúdio: Rank film studios
Duração: 100 minutos.

Sinopse:
Na conservadora Inglaterra dos anos 1950-60 o jovem Jack “Boy” Barret (Peter Mc Nemery) está em sérios apuros: é vítima de chantagem para que sua homossexualidade e a ligação romântica com um famoso advogado não seja publicamente revelada. Perseguido e capturado pela polícia, o jovem opta por se calar definitivamente para não envolver seu parceiro, Melville Farr (Dirk Bogarde). O filme adentra habilmente o submundo gay masculino da Inglaterra pós segunda guerra mundial, mostrando o lado mais sórdido das legislações que puniam relações sexuais entre homens, tornado-os vítimas potenciais de escroques ou da prisão.

Porque ver esse filme:
Este filme causou mal estar na corte britânica de censura, que via como inadequada a apresentação da homossexualidade sob um viés menos negativo, e a relativização das convicções morais, já que a personalidade mais conservadora do filme é bem pouco simpática. Recebeu uma nomeação para o Leão de Ouro do Festival de Veneza em 1961, e duas para o BAFTA de melhor ator e melhor roteiro em 1962. Muitos identificam neste filme o mérito de ter aberto espaço para discussão sobre a homossexualidade que levaram a onda de manifestação por maior liberdade sexual no final da década de 1960 e nos anos 1970.

Temas e questões:
O principal tema do filme é a criminalização da homossexualidade, mostrando o absurdo das punições que, em lugar de moralizar ou impedir desvios sexuais, levavam a multiplicação de delitos. Dentro das possibilidades do começo dos anos 1960, o filme tenta questionar a percepção dos homossexuais como criminosos, tratando-os como vítimas de uma sociedade profundamente preconceituosa e hipócrita em lugar de corruptores.

Comentário (Spoilers):
Foi um dos primeiros filmes a apresentar a homossexualidade sob uma ótica não negativa. A roteirista, Janet Green tinha interesse em desenvolver argumentos sobre mazelas sociais causadas pelo preconceito, e já havia discutido o racismo contra os afro-caribenhos no filme Sapphire (1959). Dirk Bogarde, que interpreta habilmente o protagonista Melville Farr foi vítima, ao longo de toda a vida, de boatos sobre a sua sexualidade – principal razão pela qual este ator não foi convidado a protagonizar filmes em Hollywood. Ainda assim, Bogarde insistiu em fazer o papel. Farr, é apresentado como um homem que possui os impulsos homossexuais, mas que estava disposto a resistir a eles em nome da integridade e do casamento. Aliás, é em disto que Farr sacrifica sua carreira, trazendo a justiça a quadrilha de chantagistas.

Vale ressaltar que o retrato da inadequação da legislação sobre a homossexualidade já era questionada na imprensa desde os anos 1950, na esteira do suicídio de Alan Turing, de Kenneth Crowe e de julgamentos envolvendo Lord Edward Montagu, Michael Pitt-Rivers e Peter Wildeblood. Isto levou a formação de uma comissão parlamentar chefiada por Lord Wolfenden, que em seu relatório recomendava a discriminalização das relações consentidas entre adultos em locais privados. Em 1958 foi fundada a Homosexual Law Reform Society, que militava por mudanças na lei. Ainda assim, apenas nove anos depois, no Sexual Offence Act de 1967 as relações entre homens foram discriminalizadas na Inglaterra. Vale ressaltar que outros grupos, como o Gay Liberation Front e a Campaign for Homosexual Equality ainda assim acusavam esta última legislação de ainda ser excessivamente preconceituosa.

Destaque para o detetive Harris, no seguinte diálogo com seu subordinado, sargento Bridie:

“Você está bem puritano, Bridie”

“Não vejo que mal há nisso”

“Houve uma época em que isso era crime também”

O longa também causou reações negativas do corpo de censores de Hollywood. Diferente do longa Sudenlly, Last Summer (1959) que só foi permitido depois de mostrar os horrores do estilo de vida homossexual e de apresentar referências cifradas ao tema, Meu passado me condena foi acusando de ser excessivamente liberal e aberto no tratamento desta temática.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 7 de maio de 2015

La partida (2013)

Ficha Técnica:
La partida (2013)
País: Cuba/Espanha
Direção: Antonio Hens
Roteiro: Abel Gonzaléz Melo, Antonio Hens
Duração: 94 minutos.

Sinopse:
Cuba, anos 2000. Pobreza e marginalização são o cotidiano dos jovens Yosvani (Milton García Alvarez) e Reinier (Reinier Díaz Vega). O primeiro é assistente do sogro, o contrabandista Silvano (Luis Aberto García). O segundo, desempregado, vive como garoto de programa para estrangeiros endinheirados, sustentando assim a esposa, a sogra e o filho. Os problemas começam quando a amizade entre os dois rapazes se torna cada vez mais séria, ultrapassando as fronteiras da admiração mútua e se convertendo em afeto e atração sexual. Pode o amor dos dois rapazes se fortalecer na misógina e homofóbica sociedade cubana?

Porque ver esse filme:
A vivência da homossexualidade no longa é bem próxima a realidade brasileira dos últimos quinze anos. Além disso, apresenta uma versão realista sobre a maneira como a homossexualidade ainda é objeto de questionamentos na sociedade cubana. Um bônus é a atuação de dois belíssimos atores cubanos do Teatro El Publico, famoso por desenvolver espetáculos contestatórios da moral cubana desde a sua fundação em 1992.

Temas e questões:
Um dos pontos de maior interesse do filme é a tensão entre homoerotismo e masculinidades que os dois personagens mostram. Além disto, a representação de sexualidades divergentes pela sociedade cubana, marcada pela herança colonial misoginia e homofobia em tensão com existência cada vez mais visível de sexualidades divergentes é extremamente significativa.

Comentário:
Da safra de filmes que discutem a homossexualidade em Cuba, iniciada com Morango e Chocolate (1993) e continuada pelo controvertido Antes do Anoitecer (2000), La partida é um dos mais férteis. Primeiro, pela discussão da sociedade cubana sem se preocupar em demonizar ou exaltar a revolução e seu posterior desenvolvimento. Segundo, por colocar no centro da questão os problemas relativos a tensão entre homoerotismo e masculinidade que as personagens, sobretudo Reinier, mostram. É possível ter relacionamentos com homens na sociedade cubana sem deixar de lado o lugar social de macho, mas apenas se for possível seguir certo número de regas: ter relações afetivas com mulheres; não se deixar ser penetrado; aceitar a relação sexual apenas pelo interesse financeiro; e não se deixar envolver além do aspecto monetário e sexual da relação. Em suma, uma espécie de gay por dinheiro, que os jovens que não chegam a universidade nem a carreiras socialmente valoradas podem seguir para manter um padrão de vida menos desconfortável. No caso de Reinier isso é mais claro porque as relações homoeróticas do jovem sustentam a família. Por outro lado, Yosvani é noivo de Gemma, filha do contrabandista Silvano, com acesso a uma vasa confortável e bens de consumo como tênis e roupas de marca. Mesmo assim, é com ele que o telespectador mais se identifica. É óbvio o desconforto da personagem com os negócios do sogro, e o seu apaixonamento por Reinier é o caminho para a destruição. Lançado para as ruas, sem outra saída que não se prostituir por dinheiro – numa das cenas mais fortes do filme – e roubar, Yosvani é a vítima por não se conformar com o lugar marginal que o amor entre dois homens possui na sociedade em que vive.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 5 de maio de 2015

Kinky Boots (2005)

Um dos ditados que mais me agrada é que “a grama do vizinho é mais verde”. Em certa medida, acredito especialmente nessa expressão quando considerada na ótica da vivência LGBT contemporânea. O Brasil, certamente, não é o melhor dos mundos. Mas lugares que parecem a meca da diversidade sexual e de gênero também possuem seu lado sombrio. Na Europa, por exemplo, a aceitação de pessoas LGBT nas últimas décadas e a emergência de legislação inclusiva tem sido acompanhada de uma resistência de setores conservadores da sociedade. Em certos casos, esta tensão entre progressismo e conservadorismo revela as mazelas que parecem mais adequadas ao mundo subdesenvolvido do que ao primeiro mundo.

O filme Kinky Boots trabalha com o encontro de duas mazelas do mundo contemporâneo, e as soluções inovadoras que precisam ser dadas para problemas aparentemente sem qualquer solução. Por um lado, a fábrica de sapatos herdada por Charlie Price é demasiado cara e artesanal em tempos de produção em série e barata que invadem o mercado e colocam o operários nas ruas. Por outro, a existência de maior tolerância social em relação a pessoas LGBT permite não apenas a criação de espaços de convivência desenhados segundo as aspirações deste grupo social, como também permite a emergência de novas demandas de serviços e produtos especialmente desenhados segundo as especificações deste nicho de mercado.

Assim, quando Charlie Price (Joel Edgerton) encontra a drag queen Lola ( Chiwetel Ejiofor) em Londres com a proposta de desenhar, segundo ele mesmo, “botas para mulheres que são homens”, os dois universos que o mundo capitalista marginalizou – operários caros e superqualificados e empresários de médio porte e os sub-consumidores LGBT, a sobrevivência de ambos depende de concessões que precisam ser feitas. Assim, vemos que Lola é muito senhora de seus gostos e do produto desenhado especialmente para drags que Price deveria produzir: glamour e materiais caros, mas com qualidade e resistência para a vigorosa constituição corporal de drag queens como ela. Para tanto, era preciso que ela mesma se deslocasse a Northamptom para desenhar uma coleção inteiramente nova, saindo do nicho do showbiz para uma posição de destaque e visibilidade dentro da fábrica. Por seu turno, Lola percebe que não é possível viver no mundo fechado de um cabaré, evitando conflitos e fugindo de olhares de reprovação. É preciso lutar, e combater preconceitos na raiz, e quando isso acontece, ela encontra ao lado de manifestações terrivelmente cruéis de desrespeito, a plena aceitação. É o caso do momento no qual vemos Lola preocupada, todos os dias, em se produzir para que a idosa senhoria não fique chocada, apenas descobrir pouco depois que a preocupação da idosa era simples: como deixar a tampa do vaso.

O longa do diretor Julian Jarrold não propõe soluções fáceis para os personagens. Existe uma dimensão humana, que é representada pela vitória sobre os próprios preconceitos, e a necessidade de repensar  o lugar do outro menos como uma ameaça as próprias certezas bem estabelecidas, dadas pelas imposições conservadoras do capitalismo neoliberal e mais como um potencial para novas associações e para acolher a diferença. Conviver em lugar de segregar. Apesar do humor, evidente em momentos como quando Charlie Price tenta se redimir de suas palavras preconceituosas para Lola literalmente “vestindo” os atributos dela – e falhando miseravelmente em se equilibrar – a discussão é muito séria: no mundo que assiste passivo ao desagregar de velhos direitos dos trabalhadores, cada vez mais empurrados para posições de precariedade, é preciso repensar o lugar de todos os excluídos e dos preconceitos que separam pessoas. Na prática, todos são bem mais parecidos do que desejam admitir. Neste sentido, um dos momentos mais significativos do filme é quando Lola desiste de uma queda de braços contra o operário Dan.  Ao ser questionada sobre a derrota, ela responde simplesmente que detestaria ver que o outro havia perdido o respeito e o auto-respeito… coisa da qual ela certamente entendia muito bem.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 15 de fevereiro de 2015

Transexuais no Irã (Be Like Others, 2008)

Transexuais no Irã (Be Like Others, 2008)
Direção: Tanaz Eshaghian

Um dos países islâmicos que pune mais duramente a homossexualidade é o Irã. República confessional, onde a sharia foi codificada para tipificar condutas criminosas, punindo casais de pessoas do mesmo sexo com a morte, quer por enforcamento quer por apedrejamento. Neste contexto, um grande número de pessoas se surpreende com um dado: o Irã é um dos países que mais promove cirurgias de readequação sexual anualmente e, na verdade, o país possui uma política de mudança de sexo e de gênero inclusive nos documentos de identidade de pessoas que passaram pela cirurgia. Aparentemente esta é uma das legislações mais progressistas do mundo nesta questão.

O documentário Transexuais no Irã, filmado em 2007 e filmado por Tanaz Eshaghian se propõe a investigar esta prática, ouvindo os vários envolvidos no processo de mudança de sexo, médicos, familiares e amigos dos pacientes, e sobretudo pessoas que desejam passar pela cirurgia. Isto proporciona ao telespectador uma visão multifacetada do problema: se para os médicos, juristas e agentes públicos é uma prova que o Irã possui preocupações humanitárias de grande parte já que permite e incentiva o tratando da doença (sic) do transexualismo, para os pacientes e outros envolvidos com o outro lado a questão é bem outra. A cirurgia é a única possibilidade para muitos gays e  lésbicas de serem socialmente aceitos por suas famílias e amigos, e mesmo de sobreviver num Estado onde a polícia moral nunca está muito distante e pune duramente os desvios. Em verdade, o documentário dá a entender que a situação de pessoas que passarm pela cirurgia tampouco é confortável: nem todas as famílias aceitam estes “novos” homens e mulheres, sobretudo longe dos grandes centros como Teerã; agentes públicos continuam agindo com discriminação; e o lado mais perverso do esquema, impor a pessoas cisgêneras uma cirurgia arriscada, irreversível e com efeitos sociais e físicos extremamente complicados. Em última análise, a imposição de um modelo heterossexual e binário se apropriou da tecnologia para marginalizar ainda mais aqueles que são desviantes do ponto de vista da identidades de gênero ou da orientação sexual.

O documentário trabalha com dois transhomens como exemplos típicos da vida antes das cirurgias, do processo de readequação e do pós cirúrgico. Se Anusz recebeu apoio – mesmo relutante – da familia e do namorado para realizar todo o processo, Ali Askar quase foi morta pelo pai e foi totalmente excluída da família ao seguir em frente com o sonho de realizar a cirurgia. Apoiada apenas por um amigo chamado Farhadn que rapidamente denuncia o quanto pessoas LGBT são obrigadas a passar pelos riscos para não enfrentar o preconceito da sociedade e/ou a morte. Na memorável discussão com uma repórter da rádio estatal, ele lembra que a cirurgia é cara e não se traduz em qualidade de vida para quem a ela se submetem. A discussão entre Faradn e a repórter é chocante: para esta a questão parece se resumir a homens que se vestem de mulher e mulheres que se vestem de homem e que devem sofrer o preço por esta atitude, inclusive suportando violências e  marginalização. Em verdade, a fala demonstra o quanto a realidade trans, descrita de forma positiva pelos médicos e declarações do Estado, na prática é extremamente marginalizada.

O documentário pode chocar a princípio, mas permite refletir sobre a realidade de pessoas LGBT e sobretudo trans em outras parte do mundo, além de colocar em chequecertas concepções partilhadas tanto por médicos iranianos quanto brasileiros. A abordagem patologizante, que cria a necessidade da cirurgia como componente de (algum) reconhecimento e o preconceito social está presente tanto no Irã quanto no Brasil do começo do século XXI.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 25 de novembro de 2014

A Igreja católica e o movimento LGBTT em tempos de Francisco

Ao longo do último ano, desde a ascensão do Papa Francisco, as comunidades LGBTT mundo afora se surpreenderam e continuam a se surpreender com a posição de diálogo que o chefe da igreja católica adotou. A abertura parece ir além da mera intenção individual de “quem sou eu para julgar” e começa timidamente a se estender a outras esferas. Exemplo disto é que poucos dias atrás uma comissão da arquidiocese de São Paulo divulgou uma nota em defesa da dignidade da comunidade LGBTT, rapidamente seguida de uma nota da instituição que a posição da instituição e da comissão não necessariamente são iguais.

Muitos amigos meus aprovaram com cautela, seguida de surpresa e até mesmo de franca animação com as declarações do Papa e de outras figuras na hierarquia católica. Parece, a alguns, que existe quase uma vontade real de discutir e de tolerar, deixando de lado a retórica da condenação – ao menos de forma imediata. Certamente, um ponto que conta a favor da interlocução.

Contudo, creio que é necessário refletir a respeito de alguns pontos. A possível caminhada da Igreja católica em direção a tolerância de sujeitos LGBTT como membros mais ou menos plenos da Igreja nunca pareceu tão possível, como evidenciam os grupos que defendem a diversidade católica. Mesmo assim, é preciso pensar um pouco antes de criar expectativas de um futuro em que a Igreja “evolua” para a plena aceitação da identidades sexuais e de gênero que são divergentes na sociedade.

Necessário ter em mente que a Igreja católica possui quase dois mil anos. Nenhuma instituição sobrevive por tanto tempo sem de alguma forma tentar incorporar aos seus quadros ou acoplar a sua existência a movimentos de expansão social, de enriquecimento, de conquista. Ressalvada a guarda de alguns elementos que são centrais para a doutrina religiosa católica, como a impossibilidade da ordenação de mulheres, adaptações são possíveis. Usando a consequência lógica de um dos princípios da história, as instituições participam de uma negociação dos termos de dominação com os subordinados (THOMPSON, 2005, p.p. 18-19). Está incluído aí o processo de incorporação a determinada ordem, que se flexibiliza em alguma medida para acolher rebeldias tanto quanto possível. E creio ser possível usar este raciocínio para compreender a Igreja católica, sua atuação e seus afagos: o imperativo é manter a ordem na cidade de deus, o que implica enfrentar problemas como a evasão de fiéis e a modernização da igreja.

Um dos caminhos para manter a ordem na casa, e permitir que a Igreja sobreviva numa posição de importância na contemporaneidade é lidar com temas sensíveis, a exemplo da homossexualidade, pensando menos naquilo que separa gays, lésbicas, trans, queers, e Igreja católica, e mais nas possibilidade de acomodar fiéis LGBTT. Em lugar da condenação, a possibilidade de ingresso ou de diálogo. Não se sobrevive dois mil anos sem fazer concessões, e o debate a ser travado entre o catolicismo institucional e comunidades de gays, lésbicas e trans pelo mundo deve ter esta clareza.

Mas o avanços do debate não devem ser superestimados, e o cuidado não pode ser colocado à parte. Os sinais em direção ao diálogo carecem de medidas mais concretas, em primeiro lugar. E é a partir destas é que seria possível tentar entender até que ponto a Igreja católica está disposta a ir. Um bom exemplo: a aceitação de famílias homoparentais, e a concorrente retirada de apoio político a parlamentares fundamentalistas. Mais: a criação de pastorais LGBTT’s diocesanas, iniciativa que foi solicitada por exemplo pelo GGB em agosto de 2013 e que ainda não tem resposta do Arcebispo de Salvador.

Não é minha intenção soar pessimista ou atacar a Igreja católica, antes pelo contrário. Merecem ser saudadas algumas das atitudes tomadas no último ano. Mas é necessário não tomar coelho por lebre. Tolerância não é aceitação, e a distribuição de lugares pode ser bem menos igualitária do que a retórica parece sugerir. Pode ser que aja um cristão sentado no trono de São Pedro, digno de seu homônimo reformista são Francisco de Assis (KÜNG, 2013, passim). Mas eu gostaria de ter sempre em mente que Francisco de Assis era filho de um rico mercador.

Vou me permitir encerrar o texto com uma metáfora: no período colonial, era hábito das igrejas – a Santa Casa de Misericórdia da Bahia é um bom exemplo – separar os fiéis na Igreja conforme a cor, lugar social e riqueza. Pessoas pobre e de menos status sentavam cada vez mais distante do altar e do púlpito. É preciso tomar cuidado para não acreditar que a oferta de diálogo equivale a um convite para se sentar, de mãos dadas, na primeira fila dos bancos da Igreja. Talvez a mentalidade não seja tão distante assim na cabeça dos bispos católicos reformistas. E o lugar reservado seja mais para o fundo, perto das portas de entrada e de saída.

*Este texto é devedor de uma conversa com Gésner Braga no começo de 2014, comentado os acenos  papa Francisco aos gays. Agradeço ao amigo às provocações que me deram a ideia do texto.

Referências:

THOMPSON, Edward Palmer. Introdução. In: ________. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das letras, 1998.

KUNG, Hans. O papa Francisco é um paradoxo? In: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/520253-o-papa-francisco-e-um-paradoxo-artigo-de-hans-kueng. Acesso dia 08 de mai de 2014

“Quem sou eu para julgar os gays”. Conversa do Papa com os jornalistas. In: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/522300-quem-sou-eu-para-julgar-os-gays-entrevista-com-o-papa-francisco. Acesso dia 08 de mai de 2014.

Comissão da arquidiocese doz apior tema da parada gay de São Paulo. In:http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/05/1448062-comissao-da-arquidiocese-apoia-tema-da-parada-gay-de-sp.shtml. Acesso dia 05 de mai de 2014;

TALENTO, Biaggio. GGB pede Pastoral Gay para Arquidiocese de Salvador. In: http://atarde.uol.com.br/materias/1522652/?mais_votados=1. Acesso dia 21 de mai de 2014.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 19 de junho de 2014

Praia do futuro: impressões.

Sábado de noite, e o programa escolhido foi assistir praia do futuro. Eu, meu namorado e um casal de amigos. Expectativas muito grandes depois de uma fala de Wagner Moura que o filme não era gay… Sessão mais para o fim da noite no UCI Barra, inaugurado a poucos meses. O publico era bem diverso. Gays, héteros, lésbicas, a maioria próxima dos trinta anos, mais ou menos.

Destaque para as reações do público ao filme. Num universo de cem pessoas ou pouco mais, pelo menos dez pessoas saíram durante a sessão. Um grupo delas protestando sobre o nojo que sentiam das cenas de sexo, considerando um absurdo aquele tipo de coisa nas telonas. Um homem mais velho chegou mesmo a se levantar exclamando em voz alta que aquilo era demais, durante uma das cenas entre Donato  (Wagner Moura) e Konrad (Clemens Schick). Saiu da sala, o que não deixa de ser uma lástima: na ânsia de afirmar sua masculinidade fora de toda a dúvida, me atrapalhou de ver o filme… Neste sentido, podemos pensar que Praia do Futuro tem o mérito de evidenciar os processos poucos visíveis, mas muito significativos,  pelos quais se arquitetam os modelos de ser homem, especialmente de uma masculinidade compulsivamente heterossexual, machista e homofóbica. O incômodo demonstrado pelo espectador que se lastima do excesso que o filme demonstra vem da necessidade de se afirmar enquanto homem por via de uma tripla negação: não ser mulher, não ser criança, e não ser homossexual (BADINTER, 1993, p. 34). Necessidade compulsiva toda vez que um afago é substituído por um soco. Obsessiva, pois necessita de uma vigilância permanente de cada abraço ou aperto de mão, cada toque ou olhar. Imperativa, pois o menor sinal de desvio deve ser aniquilado. Eis um componente do modelo de masculinidade que serve de base para o comportamento do homem que se levantou, indignado, oprimido pelo imperativo de reafirmar sua masculinidade heterossexual diante de todos os outros presentes no cinema, performance que a muitos ainda parece indispensável e sinônimo de segurança e de costura das subjetividades internas que garantiria a boa ordem do mundo (HALL, 2012, p.p. 12-18).

Contudo, segurança frágil porque ilusória, como o rapaz provavelmente percebeu – mesmo que não tenha confessado isto senão ao seu travesseiro. Outras formas de masculinidade, ou seja, daquilo que constitui, que é próprio do masculino, estão em emergência. O gênero não é atemporal, mas criado socialmente na relação entre homens e mulheres em cada tempo e lugar determinados. A segurança aparente que a afirmação da masculinidade do indignado abre espaço para mostrar que existem outras possibilidades que subvertem hierarquias e borram a oposição entre pólos que parecem definitivamente afastados e estanques (SCOTT, 1995, p. 86). Não foi qualquer cena de beijo que deixou nosso pobre (de espírito) homem inconformado, foi a cena de sexo entre dois homens, e mais: a cena que pressupunha que um dos dois rapazes profundamente masculinos, barbados, atléticos seria passivo. Foi no exato momento que o ator do capitão nascimento, personagem com a macheza acima de qualquer duvida, deixou que outro homem tocasse sua bunda, evidenciando desejos e preferências sexuais. Mais do que o telespectador podia suportar imaginar, quem dirá ver! Imbróglio tão sério que gerou explicações apressadas e no minimo curiosas de um gerente do Cinépolis, diante da necessidade de avisar explicitamente e carimbar nas entradas que se tratava de um filme com cenas de sexo entre dois homens, fato que precisava ser deixado claro para evitar… o que? Reclamações futuras? Desespero de ver o descentrar e estilhaçar de valores que parecem socialmente muito naturais?

Colocando o dedo na ferida, Karim Aïnouz produziu um filme que merece dois qualificativos poderosos. O primeiro a de filme subversivo, porque questiona e desloca questões que parecem naturalmente corretas na sociedade, tirando os telespectadores (héteros, homos, gays, lésbicas) da zona de conforto: as cenas de sexo mostram afeto, carinho, desejo e tesão. Não são as cenas assépticas do cinema de enlatados norte-americanos, nem sequer as cenas de sexo de cueca que a rede Globo exibe: são cenas de transa, onde os corpos transpiram de desejo com gemidos, dor e prazer.  O segundo qualificativo, a meu ver e para desespero de Wagner Moura é que se trata, sim, de um filme gay. Não apenas uma tônica gay, mas problematizando e complexificando as questões em torno de homens gays: a descoberta associada a necessidade de viver experiências de relacionamentos com outros homens longe de casa, problemas associados a conflitos entre lugares sociais prescritos e desejos pessoais, sem falar no próprio imbróglio das posições sexuais mais ou menos masculinas, para desespero dos g0ys – questão subjacente no ocidente desde ao menos a época da Inquisição. Um filme que poderia ser descrito como sobretudo gay, indicando questões que são objeto de debate e de ansiedade para muitos jovens que, descobrindo os prazeres homoeróticos se deparam com os limites e as possibilidades da sexuais, amorosas, identitárias.

O filme não é perfeito. Apesar de lançar generosamente uma miríade de questões para debate, não se prende a nenhuma delas. Se o fio condutor é a experiência e as relações afetivas e familiares de  Donato, contrapostas primeiro como lugares prescritos e desejos proibidos, e depois da fuga de responsabilidades que retornam para cobrar a fatura, Aïnouz se preocupa mais com o panorama do que com as derivações dele. O telespectador está autorizado a sair do cinema com uma opinião aberta ou fechada sobre a experiência gay de Donato, do seu sucesso ou fracasso, dos seus problemas escolhas, cicatrizes e cruzes.

O filme possui, entretanto, uma mensagem que pode ser descrita como otimista. Ao perguntar ao irmão de dez ou onze anos o que ocorreria se sumisse no mar, o garoto responde que iria salvar Donato, mesmo detestando a agua. De uma forma inesperada é o que termina acontecendo quando Ayrton (um ótimo Jesuíta Barbosa) vai a Alemanha em busca do seu herói do passado, que por sete anos não havia tido qualquer contato com a família. Decidido a achar Donato, aprendeu alemão e não se deteve até obter a resposta de uma questão mal resolvida entre eles: como conciliar seu herói, o modelo de homem na infância com o  homem que foi encontrar na Alemanha sete anos depois.

Referências:
BADINTER, Elizabeth. XY: sobre a identidade masculina. Tradução Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise Histórica. disponível em: http://pt.scribd.com/doc/89392865/Joan-Scott-Genero-uma-categoria-util-de-analise-historica . Acesso dia 19 de mai de 2014.

WAGNER Moura sobre praia do futuro. In: http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/cinema/2014-05-06/wagner-moura-sobre-praia-do-futuro-e-mais-do-que-o-filme-do-cara-gay.html . Acesso dia 19 de mai de 2014.

CINEMA alerta cliente sobre cenas de sexo em “Praia do Futuro” e provoca polêmica nas redes sociais.In:http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/cinema-alerta-cliente-sobre-cenas-de-sexo-em-praia-do-futuro-e-provoca-polemica-nas-redes-sociais/ . Acesso dia 21 de mai de 2014.

Originalmente publicado no Nùcleo UniSex, em 21 de maio de 2014

O primeiro que disse (Mine Vaganti, 2010)

Nesta interessante comédia, dirigida por um inspirado Ferzan Özpetek, encontramos uma situação diferente da usual saída do armário: quando Tommaso (Riccardo Scamarcio) retorna a sua cidade natal decidido a dizer à família que é gay e deseja ser escritor. Ali, procura o apoio do firme irmão mais velho, Antonio (Alessandro Preciosi), espécie de diretor geral da companhia de alimentos que a tradicional família Cantone administra há décadas. No jantar formal, em que um novo sócio ingressaria na direção da empresa, somos surpreendidos com uma confissão de Antonio: que era gay, tinha um relacionamento com um ex-empregado e que desejava apoio dos pais. Vicenzo (Ennio Fantaschini) termina sofrendo um infarto depois de uma violenta discussão com o filho, e implora a Tommaso que fique e assuma o lugar de Antonio na empresa. No armário afetivo e profissional, o mais novo dos Cantone termina sendo obrigado a viver exatamente da forma como não queria: submetido as expectativas dos país, longe do namorado, Marco (Carmine Recano) e pressionado de todos os lados para dirigir a fábrica.

Por algum tempo, acompanhamos o esforço de Tommaso em tentar dar conta do problema, sem dar (muita) pinta. Nisto é ajudado pela irmã, Elena (Bianca Nappi) a quem associou a direção da empresa, e pela avó (Ilaria Ochinni), a doce e sarcástica fundadora da empresa exasperada com a inabilidade de Vicenzo em lidar com um filho homossexual, com o autoritarismo da nora, Steffania (Lunetta Savino), e o alheamento da filha, Luciana (Elena Sofia Ricci).

Embora aparentemente patriarcal e centrada na vontade de Vicenzo, a família Cantone tem arranjos subterrâneos muito interessantes, que demonstram que modelos de comportamento e de conduta são muito mais aparentes do que compulsórios, numa espécie de soft-power. Doloroso, certamente, mas com possibilidades de readequamentos e de negociação. O próprio Tommaso é um exemplo disto: sem desejar o lugar do irmão e a carreira de administrador, o jovem vive em Roma com relativa liberdade para se relacionar com outros homens e cursar Letras, em lugar de Administração, sem que família saiba. Da mesma forma, a avó foi apaixonada na juventude por Nicola, o irmão de seu marido e avó dos rapazes. Este romance impossível não impediu que a familia florescesse e a fabrica se tornasse maior e mais rica – mesmo que o contato de ambos se restringisse ao toque de mãos durante o preparo da massa.

O filme facilmente encanta o telespectador. Não apenas pela comédia de algumas cenas, mas pela profunda humanidade dos personagens, mesmo quando demoram um pouco a demonstrá-la. Este é o caso de Luciana ou de Elena: mulheres desconfortáveis em seus papéis, limitadas por espectativas de pais e irmãos, terminam criando maneiras criativas de sair de uma posição subalterna, ou, ao menos, de negociar os termos de sua subalternidade.

Sem apontar para soluções fáceis, também é um filme que fala de sacrifícios – não apenas em prol da família ou da fábrica, mas até mesmo em prol daquilo que se deseja obter. O preço a ser pago muitas vezes é alto – Tommaso revela, no final do longa, que não deseja administrar a fábrica, que prefere ser escritor, muito embora silencie sobre o armário. Mas quase sempre vale a pena, mesmo quando vive nas lembranças de um passado mais dourado: seja para a nonna e seu amado Nicola, seja para Luciana e a fase da juventude passada em Londres ao lado do namorado cantor de rock, seja no caso de Antonio na eterna busca do amado Michele, a quem despediu por medo da descoberta. Ou na aceitação da carreira escolhida por Tommaso, elemento que parece sugerido nas últimas cenas do filme.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 17 de abril de 2014

A difícil caminhada de ser pai e ser gay: Parte II

Depois de algumas semanas, retomo o tema de Janeiro. Desta vez, tentarei dar conta de dois fenômenos. O primeiro diz respeito aos comentários sobre a foto de Kaleb e Kordale, o casal gay com duas filhas que tanto furor causou algumas semanas atrás – e que, como de hábito, foi esquecido pela Internet.

Um dos grandes problemas na argumentação dos leitores, sobretudo brasileiros, era a dificuldade de conceber como aquela união poderia caber dentro do conceito de família. Numa sociedade ainda profundamente influenciada por valores cristãos e patriarcais famílias homoparentais tem o potencial de mostrar as fraturas da ideia compartilhada que diversos setores de sociedade fazem do que seja família.

Não se trata de dizer que a sociedade não absorve famílias diferentes do padrão marido\trabalho esposa\lar e filhos. Desde muito antes da lei do divórcio mulheres ocupam o papel de chefes de família, não raro com uma autoridade que se sobrepõe, inclusive, a do marido. Agora, em termos de ideias de família, as estratégias narrativas resultaram, historicamente, por valorizar uma família nuclear e patriarcal. Sancionada pelo direito civil pelo menos até 2002, e por valores morais desde então. Basta colocar como exemplo um diálogo para ilustrar este ponto: ao falar de transgressões de uma jovem, as distintas senhoras reunidas lembravam que a maior culpada era a mãe. Além de liberal, trabalhava fora e negligenciava seu papel maior, de guia moral da família, sobretudo das filhas. Inclusive reprimindo, quando necessário, comportamentos que parecem indesejáveis ou fora do padrão. Voltarei a isto mais embaixo.

De qualquer forma, o incômodo de Kaleb e Kordale é mostrar que existe felicidade e satisfação além dos estreitos contornos dos ideias socialmente difundidos e tornados hegemônicos ou passíveis de hegemonização nas sociedades – sobretudo na nossa. Trocando em miúdos: o mal estar de uma família que desconstrói papéis sociais e os organiza em termos diferentes revela que existem outras possibilidades de família, sem abdicar de amor, afetividade e felicidade.

Na coluna passada eu disse que a hegemonia se baseia na ignorância. Ignorância leva a raiva, a raiva ao medo, e o medo ao sofrimento e a morte. Consequência irreversível da dificuldade de equacionar família, homossexualidade e aceitação levou aos comentários contra as fotos de Kaleb e Kordale. Sejam travestidos de desejo de preservar a privacidade do casal e das famílias, como se esta ideia não tivesse uma esfera de publicidade; seja na forma de violência explícita, uma das quais chocou o Brasil nos últimos dias, e levou a uma carta emocionada do deputado federal Jean Wyllys. Um pai matou o filho a pancadas para que ele aprendesse a ser homem. Matou a sangue frio, sem se importar com a aniquilação do futuro de uma criança. Tudo em nome de um ideal de paternidade e de masculinidade que são opressores. Não apenas para homossexuais: mas também para heterossexuais, muitos dos quais se comoveram com o crime. O comportamento do pai precisa ser colocada em correlação com as palavras de pessoas como o deputado Federal Jair Bolsonaro, para quem a cura para meninos femininos são as agressões. Muito bem, deputado. Este possível eleitor carioca seguiu a sua cartilha. Agora talvez seja necessário esperar a sua resposta a este crime!

O que une a experiência do jovem Artur, brutalmente morto por seu pai e a de Kaleb, Kordale e suas filhas? Algo muito simples. O primeiro é a prova maior do quanto o modelo de família que passava pela cabeça dos críticos de Kaleb e Kordale, que tentam instruir sobre o que é próprio do “ser homem” e “ser mulher”, punindo duramente seja de forma física ou psicológica as transgressões é problemático e precisa ser repensado. Quais as características centrais para um modelo de família? Ensinar uma filha a ser mulher e um filho a ser homem, ou transmitir amor, carinho, compreensão e, acima de tudo, aceitação? O segundo, com o exemplo de Kaleb e Kordale é mais esperançoso: a possibilidade de ser diferente e de transcender preconceitos está ai. É preciso ter coragem para viver estas novas possibilidades, e lutar para que elas sejam implementadas. Lutar com o voto, lutar para ter uma família feliz, lutar para que instituições como escola ou comunidade se adequem a estas novidades. E ter esperança.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 03 Abril de 2014

Orações para Bobby

Morte e redenção em Orações para Bobby *

Dentro da comunidade gay, poucos filmes devem gozar da mesma importância de Orações para Bobby, longa-metragem para tv dirigido por Russel Mulchay. Produzido para tv em 2009, trata-se de um dos filmes mais comentados da comunidade gay, praticamente constando como uma unanimidade no quesito importância e relevância da produção. Em tempos de fundamentalismo religioso militante e raivoso, agressivo, constitui um hino contra a intolerância do fundamentalismo cristão.

O filme se baseia na experiência real de Bobby (Ryan Kelley) e sua mãe, Mary Griffith (uma inspirada Sigourney Weaver), mãe de família profundamente cristã, a partir da descoberta da homossexualidade de seu filho mais novo, Bobby Griffith. Com enorme dificuldade em lidar com a descoberta do filho, a única saída possível para Mary aparece na forma de um tratamento psicológico aliada a uma estratégia de busca de conforto religioso que permitiriam a Bobby superar sua “doença”. Progressivamente, o jovem entra numa espiral de tristeza profunda, alimentada por uma dolorosa aceitação da própria homossexualidade acompanhada por enormes conflitos com a mãe, até o ponto do rompimento: decidido a viver sua sexualidade e o amor pelo namorado em outra cidade, Bobby termina rompendo com a família e indo morar em Portland. Uma vez lá, a distância marca muito mais o desenraizamento de Bobby – alheado, por um lado, do núcleo familiar, e, por outro, do namorado que o traiu – do que a liberdade que o rapaz aspirava. Entendendo que não tinha opções, Bobby termina retirando a própria vida, numa bela cena, que passa com maestria a confusão e desamparo do personagem.

A morte de Bobby marca a clivagem central do filme, e divide muito claramente os dois momentos que a personagem de Mary vive. Se o primeiro é marcado pelo endurecimento de sua visão de mundo, passando a normatizar e controlar não só as amizades, mas, até mesmo, o jeito de corpo do jovem Bobby, o segundo momento do filme acompanha o processo de redenção de Mary; não apenas pela aceitação da homossexualidade do filho e revisão e mudança de seus atos anteriores, mas, igualmente, por uma tomada de posição a respeito disto: se antes a preocupação de Mary estava nas implicações terrenas|sociais e além-vida da homossexualidade do filho, agora a morte e a descoberta das dores e sofrimentos de Bobby terminam por marcar uma completa reconfiguração de mundo para Mary. De fundamentalista cristã, empenhada na leitura literal dos versículos que supostamente condenam a homossexualidade, Mary se converte em uma militante pró-direitos LGBTT, profundamente preocupada com o efeito dos discursos homofóbicos, sobretudo os de orientação cristã fundamentalista sobre jovens homossexuais. A redenção de Mary é o tema desta segunda parte, e a militância termina por funcionar como catalizador do processo de perdão e da possibilidade de seguir em frente, reconciliando o passado e tentando um futuro melhor.

Com atuações boas e cenas comoventes, é o tipo de filme-bomba que poderia ser exibido a pais religiosos de jovens gays, pouco atentos as consequências funestas do seu preconceito. Rapidamente o telespectador cria empatia com Bobby, o tipo de rapaz perfeito, assim como passa a ter compaixão por Mary, com o adicional de colocar em xeque dogmas religiosos não por meio de oposições a doutrina as igrejas cristãs, mas por ministros religiosos que propõem outras interpretações da Bíblia. Neste verdadeiro “caminho do meio” o filme coloca na agenda da mensagem cristã o respeito e aceitação de outras formas de amor, constituindo uma plataforma poderosa para abalar certezas de religiosos convictos.

Mesmo com os problemas de um filme para a tv, como por exemplo um excesso de didatismo na primeira parte, e uma tendência a “correr” com processos de descoberta e aceitação dos personagens, não deixa de ser um dos filmes mais interessantes do gênero.

* O filme é baseado no livro de Leroy Aarons, Prayers for Bobby: A Mother’s Coming to Terms with the Suicide of Her Gay Son, editado em 1995, contando a história de Mary, e conta com excertos do diário de Bobby

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 1 de abril de 2014