Pecado da Carne (2009)

Pecado da carne, filme de 2009 dirigido por Haim Tabakman é um filme dotado de atmosfera. De fato, o longa transporta o telespectador para as sufocantes ruas do Meah Shearim, o bairro ultra-ortodoxo de Jerusalém, onde uma história de amor entre dois homens termina florescendo com consequências severas.

O longa gira em torno de Aaron Fleischman (Zohar Shtrauss), um dos mais respeitáveis membros da comunidade. Estudioso dos textos sagrados, pai e marido devotado, Aaron também trabalha como açougueiro da comunidade – função importante especialmente num subgrupo judaico que leva as estritas regras dietéticas a extremos. Responsável por uma função tão importante, o protagonista é obrigado a colocar um aviso de busca de um ajudante, já que o volume de trabalho é muito grande. Neste ponto do filme, somos apresentado ao jovem, belo e misterioso Erzi (Ran Danker), que foi aparentemente abandonado por um amigo. Sem lugar para ficar, ele pede emprego a Aaron, que consente em admitir o jovem sem experiência na função.

O filme em seguida apresenta a lenta aproximação física e afetiva dos dois homens, mostrando a tensão sexual entre Aaron e Erzi. Se o desejo por outros homens é rapidamente mostrado por Erzi, que busca reatar a amizade com um rapaz com o qual se envolvera pouco antes, Aaron é a outra face. Não apenas mais contido – se bem que mostrando um desejo sublimado pelo assistente – como também ligado a um discurso religioso que evoca a resistência ao desejo por outros homens.

Rapidamente, entretanto, a relação com Erzi se torna uma alternativa de vida para Aaron: não apenas um assistente ou um amante, mas uma possibilidade de escapar de um cotidiano difícil em em grande parte pouco satisfatório. Seja como pai, religioso ou marido, a frágil arquitetura de vida de Aaron não resiste ao desejo representado pelo assistente.

Neste trecho fica patente um dos elementos mais interessantes do filme: a sensação do sufocamento se traduz numa vigilância da comunidade enquanto instituição das condutas – inclusive sexuais – de seus membros. O romance entre ambos começa a se tornar de conhecimento público, despertando a ira dos vizinhos por duas razões: tanto a relação entre os dois entra no rol do que era considerado uma abominação, como implica no rompimento da confiança como guardião da pureza da comunidade na forma do seu papel como açougueiro. Assim, a mobilização contra os dois é bem mais poderosa do que um caso temporalmente análogo de sexo antes do casamento.
Sem soluções fáceis, o grande mérito de Pecado da Carne é pensar como as vivências do homoerotismo possuem soluções que em seu contexto podem ter consequências bastante graves. Neste sentido, não deixa de ser uma importante reflexão sobre tolerância e intolerância, imposições religiosas de ordem religiosa, bem como os graus de internalização e de concilialção que estas regras podem ter nos sujeitos que vivem sobre elas.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 07 de Janeiro de 2014

Pink money, Parte I

O cenário é uma grande livraria da cidade de Salvador. Público certo, cotidiano, agitado e diverso dentro de quem pode frequentar aquele tipo de estabelecimento.  Gente apressada, gente com tempo, gente correndo atrás de presentes ou de entretenimento. Pessoalmente, nada a fazer por ali exceto esperar pelas compras da minha carona – e ler alguma coisa de passagem.

Sem muita paciência pra livros amplos ou difíceis, passeio muito pra lá e pra cá. Passo na parte de história, claro, quando vejo uma pequena prateleira com livros de temáticas GLS. Tremenda surpresa, naquele canto esquecido na livraria (que parece bem ordenada: bestselers > literatura > filosofia > história > GLS, entre filosofia e história). Folheio muito interessado os livros. Bastante literatura picante, alguns livros informativos. Algo de psicologia, e um livro com esquetes do Tom of Finland. Um rapaz ao meu lado olha num tom meio especulativo para mim, talvez chocado ou estimulado com a capa do livro.

Mas a questão que fica mais ou menos incômoda pelo resto do dia é esta: porque este lugar na livraria? Porque tão escondida? Porque aquele tipo de literatura? Porque tantos autores homossexuais e gays, ou com trabalhos nesta temática – fico apenas com Wilde ou Kenneth J Dover que não estão por lá – não tem espaço nesta pequena prateleira? Ou, posto de outra forma, que tipo de lógica governa esta ordem dos espaços dentro de uma livraria?

Neste caso, alguns pontos parecem bastante claros. Um, é inegavelmente um passo a frente colocar uma prateleira de temática GLS/LGBTT numa grande livraria. Dois: autores consagrados ou acadêmicos que tenham temática homossexual não entram nestas prateleiras. São relegados a lugares mais visíveis. Mesmo quando o livro desenvolve uma análise sobre a homossexualidade, parece existir algum tipo de segregação. Como se apenas quando a temática gay fosse um rótulo irremovível (sem chances para “literatura”, ou “história”) é que deva ser colocado naquela prateleira. Terceiro, o local é bem particular. Entre história e filosofia, dentro do campo das humanidades. Pouca produção? Pouca procura? Um pouco dos dois, talvez? Respostas em aberto.

Em tempos onde o Pink Money começa a interessar empresários no Brasil, pouco me admira que as pessoas tentem surfar nesta onda, lucrando poderosamente com o jogo das identidades no presente. Os elementos que podem ser significados como partes do pertencimento determinado ideal – marcas de cuecas, sungas, óculos, tipos de música e em menor grau literatura e cinema – também integram este jogo. Neste meio tempo, a visibilidade pode vir de duas “raízes”, por assim dizer. Uma delas é a da tolerância pragmática, devido ao dinheiro. Comprar a leniência, silêncio ou assentimento do outro, por assim dizer. A outra talvez tenha origem numa aceitação da diversidade – onde o particular integra, questiona e transforma o modelo. Acharia pobre estar num relacionamento com um gay machista. Também acho pobre privilegiar produtos que reproduzam pura e simplesmente estereótipos – como o machismo da frase anterior. Ambas podem ser encontradas, creio, no Pink Money – ou em prateleiras de produtos direcionados.

Mas há mais. Não estou defendendo a supercompartimentalização. Eu não compraria um livro ou objeto somente porque seu autor é gay. Nem acho que todos os produtos elaborados com esta temática devem estar dentro da prateleira GLS da livraria (ou da caixinha)… Mas gostaria que a divisão não fosse de tantos extremos, entre o tudo e o quase nada. Claro, num tempo onde o processo de construção identitária ainda está em negociação estas dicotomias são compreensíveis – mas não creio que devemos nos deixar levar por ela. Gostaria, talvez, que a temática GLBTT/GLS mobilizasse tanto as obras da livraria quando subtemas relevantes a exemplo de literatura fantástica ou direito administrativo mobilizam.

Apenas uma lembrança. Um dos primeiros lugares onde encontrei livros com temática GLBTT de todos os tipos – histórica, filosófica, literária e erótica – foi à livraria Grandes Autores, que ficava em Ondina a menos de vinte metros do meu colégio. Depois da aula, corria pra lá e fazia minhas leituras clandestinas em pé na prateleira, morrendo de medo da próxima página de um romance gay e da chegada de um colega de sala. Mas foi nesta mesma prateleira que vi pela primeira vez obras como os devassos no paraíso de Trevisan, ou os tríbades galantes, fanchonos militantes de Torrão Filho. Quase dez anos atrás a livraria deu lugar a um banco do Brasil. Numa grande livraria ou sebo, nunca mais vi qualquer literatura ou estante gay. No máximo, uma de erotismo/sexualidade/sexologia. Agora eu vejo, e fico com minha cisma. O que mudou?

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 26 de Novembro de 2013

Poucas cinzas (Little ashes, 2008)

Neste drama histórico dirigido por Paul Morrison e ambientando na Madri dos anos 1920 e 30, vemos a difícil relação entre três das maiores personalidades da primeira metade do século XX em seus campos de atuação: o pintor Salavador Dalí (Robert Patisson) e o poeta e dramaturgo Federico Garcia Lorca (Jávier Beltrán), além Luiz Buñuel (Mathew McNulty), cineasta de filmes como Un Chien Andalou (1928).

O filme enfoca a aproximação dos três ao longo de uma quase quinze anos: de 1922, quando Dali chega à residência de estudantes da Academia de Belas Artes, até 1928, ano que marcou o começo de um longo período de afastamento; e depois de 1928 a 1936, quando Dalí e Buñuel já em Paris participam de diversos movimentos de vanguarda como o surrealismo, ao mesmo tempo em que propõe uma forma de viver a arte diferente da de Lorca. Para este, o fundamental era transformar a Espanha, mas a partir do patrimônio cultural e dos temas relevantes para uma sociedade profundamente convulsionada pelos anseios democráticos da esquerda revolucionária e pelo facismo nacionalista. Buñuel, por sua vez, tinha uma proposta mais iconoclasta que questionaria a própria cultura espanhola, em lugar de tentar transformá-la de forma concreta. Dalí, por sua vez, acompanha Lorca num primeiro momento – antes de se decidir por uma posição apolítica e indiferente.

O foco do filme foi a difícil relação amorosa entre Federico Garcia Lorca e Salvador Dalí, enlace que ficou oculto do grande público por décadas. O longa demonstra não apenas a lenta aproximação física e intelectual entre os dois jovens estudantes, como deixa clara a homofobia reinante na maioria dos meios – inclusive no meio artístico, sendo esta repreensão presente sobretudo na figura de Buñuel. O relacionamento é pontuado pela personalidade exuberante e fora do comum de Dalí, profundamente amado, mas incompreendido, por Lorca. A situação chegou ao extremo quando foi descoberta por Buñuel, o que precipitou tanto a separação física e amorosa dos personagens quanto à opção por caminhos distintos de atuação política, artística e social.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 22 de Outubro de 2013

Mambo Italiano (2003)

Nesta comédia de 2003, o diretor Émile Gaudreault retratou com maestria a acomodação da homossexualidade por uma tradicional – ou nem tanto – família italiana. O longa gira em torno da saída do armário de Angelo Barberini (Luke Kirby) o filho mais novo de um casal de imigrantes italianos que vivem confortavelmente instalados num bairro italiano numa grande cidade canadense. Angelo está longe de ser o filho ideal para Gino (Paul Sorvino) e Maria (Ginette Reno): além de não desejar seguir a profissão dos sonhos dos pais, como advogado, o jovem se sente preso às aspirações e preconceitos da comunidade onde vive. Além destas questões, Angelo tem outro grande segredo: é homossexual no armário para a família, e morre de medo que os pais descubram seu grande segredo.

O longa nos transfere, logo nos seus primeiros minutos para o passado e presente imediato de Angelo, mostrando como a homossexualidade desviante sempre foi um problema desde a infância. Na escola, seus colegas o humilhavam, e o bullying termina separando Angelo de seu melhor amigo de infância, Nino Paventi (Peter Miller). Junto com a criação sufocante dos pais e a morte da tia Yollanda (Tara Nicodemo), única pessoa que parecia compreender o inconformismo de Angelo, estes fatos perseguem o protagonistas como fantasmas poderosos até o final do filme. A solução inicial que Angelo encontra é sair da casa dos pais aos 27 anos, o que gera uma crise familiar profunda, afinal, qualquer saída antes do casamento ou da morte parece prematura na tradicional família Barberini.

A trama do filme passa, então, para o enredo principal com o relacionamento secreto entre Nino e Angelo, que voltaram a ser amigos depois de tantos anos de afastamento. Inicialmente satisfeito com o segredo, rapidamente Angelo se desgasta com as mentiras que precisa contar aos pais, que insistem em arrumar belas moças para sair com o filho. A saída do armário precipita a descoberta do relacionamento entre Angelo e Nino, e desencadeia a crise das duas famílias em como lidar com dois “omossessuales”. Aqui o longa começa a ganhar mais profundidade, sem deixar de lado o humor: enquanto os Barberini saem de um contexto de negação para a aceitação do filho, tentando acomodar tanto a tradição de uma família italiana quanto as diferenças e inconformidades que Angelo apresenta, a mãe viúva de Nino, Lina Paventi (Mary Walsh) simplesmente opta por ignorar a homossexualidade do seu filho. Nino não é homossexual, mas sim um comedor, que passava por uma fase da qual em breve sairia. Lina ao longo do filme procura vencer pelo cansaço a resistência de Nino, tentando conformar seu filho ao papel para o qual ele parecia destinado: policial respeitável, filho adorado, marido perfeito. O resultado deste empreendimento é o matrimônio de Nino com a pouco respeitável Pina Lunetti (Sophie Lorain), também colega de escola dos rapazes.

A acomodação da homossexualidade pela família, no filme, é mostrada sobre estes dois prismas, bastante diversos entre si. Por um lado, a aceitação lenta e gradual pelos Barberini; por outro, a opção de ignorar e mascarar pelos Paventi. Sem fazer necessariamente um elogio de um e outro, o diretor demonstra com maestria como o processo de identificação com algo – uma comunidade, neste caso – é negociado e mediado por valores e aspirações com as quais os personagens são criados (HALL, 2011, p.p 77-91). Angelo sempre experimentou uma masculinidade subalternizada, e de certa forma esta experiência de estar à margem abria espaço para que ele buscasse outras referências, externas ao mundo da comunidade italiana. Assim, Angelo experimenta a visita, por exemplo, ao gay village, o bairro gay. Após a visita, embora assuma um discurso de rejeição da identidade gay, Angelo não deixa de se sentir questionado por ela a ponto de admitir a possibilidade de se encontrar naquela comunidade. Mais: a rejeição da identidade gay e do bairro gay parece ser causada muito mais por uma pressão externa do que por uma opção deliberada de Angelo. Assim, o personagem admite odiar o bairro gay apenas quando Nino se aborrece pela visita. Da mesma forma, Angelo se pergunta a razão do namorado não desejar pertencer à associação de policiais gays – demonstrando o quanto o seu pertencimento a identidade comunal criada no bairro italiano é em verdade frágil e sujeita a adaptações.

Isto explica, inclusive, a dimensão humana de Nino e Angelo. O primeiro não admite a identidade gay, e tenta sublimar ou, na impossibilidade, ocultar seus desejos por homens. Inclusive o casamento não o impede de se relacionar com outros homens fora do leito conjugal, colocando em dúvida a “conversão” que Pina afirmava ter realizado. O desejo por homens e a rejeição da identidade gay aproxima Nino da ambiguidade do comedor, tensionado entre desejo e papel social. Neste sentido, o momento no qual as famílias mais se hostilizam é quando Lina e Gino discutem quem é o ativo e o passivo da relação.

Por sua vez, Angelo não é um protagonista heroico. Revela-se muitas vezes grosseiro com os pais, intragável com a irmã e pouco compreensivo com o namorado. Em dado momento, quando decide se tornar voluntário no tele-ajuda gay, Angelo é incapaz de mostrar algum nível de empatia com o sofrimento alheio. Ao mesmo tempo, diz desgostar de efeminados. Neste momento em especial demonstra uma marca muito comum entre gays: a rejeição da efeminação, como se de alguma forma a aproximação com o feminino fosse algo deletério, que deve ser evitado a todo custo. Colocando esta frase na boca do protagonista, o diretor não apenas o aproxima do telespectador, como ironiza o preconceito de Angelo: embora diga isto dos efeminados, é notável a própria aparência pouco máscula do personagem, que permite que ele seja pensado como tão efeminado como aqueles que ele critica.

Usando com inteligência ironia e humor, o diretor constrói uma comédia leve, onde os personagens são seres humanos fragmentados constantemente negociando e construindo suas identidades. Entre estar no bairro gay ou no bairro italiano, Angelo e Nino adaptam e negociam os termos do exercício de sua sexualidade, com maior ou menor sucesso. Sem falsos moralismos, o filme destaca o aspecto mais construtivo da identidade gay ou heterossexual, proporcionando uma interessante reflexão sobre preconceitos, família, aceitação e homossexualidade.

Referências:
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro, RJ: DP & A, 2006. 102 p.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 21 de Novembro de 2013

Baby Love (2008)

Dirigido por Vincent Garencq. Quais os limites e arranjos possíveis entre a identidade sexual e do desejo de ser pai? Este é o tema central do longa Baby Love (2008), longa-metragem francês centrando na figura de Manu (Lambert Wilson), um bem sucedido pediatra que deseja ser pai a todo custo, mesmo que a revelia de seu parceiro de longa data, Philip (Pascal Elbé), que termina por romper a relação com Manu quando este anuncia que entrou com um pedido de papéis para a adoção.

Tratando a parentalidade como algo aberto e frágil diante da falta de leis que permitam o casamento, ou da presença de diretrizes que impedem a doação por homossexuais. É assim que Manu se vê impedido de adotar um filho, devido à descoberta súbita, pela assistente social, da sua homossexualidade; e que termina por procurar a solução pouco usual de uma barriga de aluguel a partir de anúncios em sites de casais de lésbicas.

Neste contexto, Manu conhece e desenvolve uma relação de amizade com Fina (Pilar Lopez de Ayala), uma imigrante argentina ilegal que precisa de um casamento para permanecer em solo francês e realizar o sonho de trabalhar numa grande empresa. Sem grandes surpresas, termina aceitando ter o filho de Manu em troca do casamento que lhe garantiria um visto permanente.

A partir daí, a trama desenvolve uma reflexão interessante sobre o amor, a vontade (e o talento!) de ser pai e coisas que aprendemos como sendo naturais e que no cotidiano são sujeitas a negociação. A grande lição do filme é apresentar a identidade gay não como uma escolha entre a paternidade e a sexualidade, mas como um campo de possibilidades inclusive da formação de famílias e do direito de ser pai.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 18 de Outubro de 2013

Não podemos nos dar o luxo de vender barato os nossos votos

Não podemos nos dar o luxo de votar de forma inconsciente. De não pensar um pouco antes de apertar os dedos na urna eletrônica. De refletir, cuidadosamente, no candidato que escolhemos. Não podemos ser um eleitorado invisível, estatístico do Datafolha e do Ibope. Seria um luxo demasiado caro para os homossexuais brasileiros.

Hesitei muito em começar a escrever esta crônica, e mais ainda na publicação. Lidar com política e com as opções políticas de cada um não é nem um pouco fácil. Por um lado, não é o mais popular dos temas fora de alguns lugares comuns (pérolas de Feliciano ou alguma decisão judicial); por outro, existem interesses de natureza diversa que governam a escolha de um político ou de outro, independente da orientação sexual e da identidade, gay ou não.

Contudo, acho necessário sinalizar a importância que a participação na política, institucional ou não, tem para os cidadãos LGBTT como um todo. Por uma razão muito simples: ainda é necessário lutar, arduamente e de forma cotidiana para sobreviver num contexto social onde a homofobia é constante – seja de forma velada, seja de forma explícita. Os políticos homofóbicos, sobretudo os da bancada evangélica/religiosa e seus apaniguados, ao lado dos apregoadores da governabilidade, nesta conjuntura são verdadeiros inimigos da plena cidadania para sujeitos LGBTT. E inadvertidamente, o voto destes mesmos cidadãos frequentemente podem eleger políticos homofóbicos.

Neste sentido, dois episódios são sintomáticos, um na política nacional e outro na política municipal. O primeiro diz respeito às polêmicas em torno do licenciamento de Marta Suplicy (PT-SP), relatota do PLC 122 entre 2009 e 2012, o famoso projeto que dispõe sobre a criminalização da homofobia. Ao ser indicada ministra da cultura, Marta Suplicy cedeu a vaga ao suplente de senador Antonio Carlos Rodrigues (PR-SP), católico praticante e abertamente contra o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e a legislação de que trata o projeto. Para desespero do movimento LGBTT em todo o país, prometeu inclusive militar contra o projeto, em entrevistas amplamente divulgadas pela mídia:

“Vou seguir sempre as posições da Igreja Católica nas votações. Para mim homem é homem e mulher é mulher. Também sou contrário ao aborto e à eutanásia”, afirmou nesta quarta-feira (12) o vereador paulistano, após uma sessão na Câmara Municipal marcada pelas homenagens dos colegas ao novo senador por São Paulo.” [1]

Tal agenda política causou um enorme mal-estar entre os eleitores da senadora Marta Suplicy, tida como tradicionalmente alinhada com o movimento LGBTT. Parecia absurdo que a saída de uma aliada, com trânsito no executivo e no legislativo desse lugar a um retrocesso de tal ordem: afinal, assumiu a cadeira um parlamentar, que, num estado que se intitula laico, promete votar de acordo a suas convicções religiosas, e não ao interesse comum e menos ainda de grupos minoritários. Mas o mais absurdo é que as centenas de milhares de votos recebidos por Marta Suplicy agora são representados por um político que está, evidentemente, em total descompasso com a agenda política pró-direitos LGBTT da senadora. Afinal, os dois são membros de partidos com agendas opostas, já que o PT defende algum tipo de reformismo social, enquanto o PR assume neste aspecto uma orientação conservadora.[2] A lógica que prevaleceu, pois, não foi em torno da coerência de projetos, ou minimamente, de princípios: mas em torno da governabilidade nas casas legislativas federais, representada pela chapa entre PT e PR. A lição que fica para o eleitor LGBTT é a de vender seu voto muito caro, e sabendo claramente que ao optar por um aliado histórico, pode-se estar elegendo um inimigo futuro da mesma chapa.

A questão de um suplente com um conjunto de propostas totalmente oposto ao de Marta Suplicy e a de uma parte de seu eleitorado foi apenas um dos problemas naquele contexto. Havia outro, ainda mais grave. Com a relatoria em aberto, qualquer senador poderia se candidatar para a vaga, o que de fato ocorreu: ninguém menos que Magno Malta (PR-ES) pediu para assumir o cargo.[3] Não é preciso recuperar o histórico do senador para saber que a relatoria  de um projeto desta magnitude nas mãos de um dos líderes da bancada evangélica teria consequências perniciosas para os defensores da lei. Depois de uma reação da sociedade civil, a relatoria terminou nas mãos do senador Paulo Paim (PT-RS), e segue em tramitação. Ainda assim, durante três meses (setembro-dezembro de 2012) a questão ficou em aberto, e o governo federal demonstrou  que os direitos LGBTT certamente não entrar na hierarquia de prioridades. Enquanto na indicação de outros cargos e relatorias (entendidos como mais nobres – ou mais úteis) envolvem grande cuidado na indicação de seu ocupante, a questão aqui parece ter sido tratada de forma tosca, tacanha, sem inclusive algum espaço para que, antes do licenciamento, a senadora passasse a relatoria para um politico pró-direitos LGBTT.

Mas temos outro caso bastante relevante na política estadual em Salvador. O deputado estadual Pastor Sargento Isidório  filiado ao PSB (partido de esquerda com uma agenda de reformismo social e ao menos, simpatia pelos direitos LGBTT), provocou mal estar na assembleia legislativa e na câmara de vereadores ao usar a tribuna para a defesa da cura gay e das posições homofóbicas e racistas do deputado federal Marcos Feliciano (PSC-SP).[4] Isto gerou uma situação bastante complicada, já que apesar de o parlamentar ter se colocado num conflito quase sem conciliação com o programa do partido, que é de apoio aos direitos LGBTT, continou filiado ao PSB até meados de outubro de 2013, quando se filiou ao PSC sem a perda do mandato.
É necessário pensar, que durante este período votar num candidato do PSB, digamos, ao governo do Estado ou ao senado federal poderia significar dar espaço e trânsito a figuras como a do deputado pastor Sargento Isidório não apenas nos debates do legislativo, ou junto ao seu eleitorado: mas sim, inclusive, a possibilidade de intervir negativamente nas tímidas políticas estaduais para o segmento LGBTT. O voto, que deveria justamente ir para um partido minimamente alinhado com uma agenda pró-direitos, neste caso, serviria para eleger um político não apenas contrário, mas abertamente militante contra direitos a exemplo do casamento gay e da criminalização da homofobia. Com possibilidade, inclusive, de integrar comissões executivas que determinam políticas para este segmento no estado. Em suma: mesmo que na querela entre Isidório e o PSB o partido tenha mantido alguma coerência entre projetos pró direitos LGBTT e ações concretas, esta talvez seja resultado muito mais da importância atribuída as negociações políticas do que a estes direitos.

Um caso similar desponta nacionalmente neste momento, envolvendo também o PSB representado pelo seu candidato a presidência, Eduardo Campos (PSB-PE) e a ex-senadora Marina Silva, figura de proa do movimento político Rede Sustentabilidade – e abertamente contra o casamento LGBTT – embora a favor de algum tipo de união civil.[5] Se votar num presidente que vem de um partido ao menos simpático a uma agenda pró-direitos, a vice-presidente neste caso parece ser um problema – ou ao menos, um elemento a ser levado em consideração na equação. Afinal, num país com o histórico da eleição da chapa Tancredo Neves/José Sarney, quando o segundo assumiu a presidência pela morte do primeiro, ou Collor/Itamar Franco, quando o segundo assumiu a presidência pela renúncia do primeiro, parece razoável refletir sobre o papel dos vice-presidentes, mesmo que o bom-senso aponte para uma função mais cerimonial que efetiva. Vale ressaltar, no caso de Eduardo Campos/Marina Silva que tanto a cabeça de chapa não está claramente definida, como as intenções de voto em Marina Silva são maiores que as em Eduardo Campos – o que torna a suposta vice incomodamente capitalizada para negociar o que é prioritário, o que é importante e o que é meramente perfumaria, inclusive, dentro da lógica que foi demonstrada acima.

Não se trata, de maneira nenhuma, de fazer proselitismo de um ou outro partido: mas de pesar de forma adequada quais políticos que merecem os votos e quais não merecem. A equação não é simples: frequentemente, votar num candidato é votar numa chapa com políticos em completa ignorância dos direitos LGBTT, quando não em militância aberta e constante contra estes direitos. Devemos pesar muito bem e de forma consciente o menor dos males: votar num candidato alinhado com os direitos e políticas públicas LGBTT, mas sem uma chapa com um grande partido; ou votar num candidato alinhado, mas parte de uma chapa que pode transformar os direitos LGBTT numa questão de menor importância.

Cabe ressaltar, aqui, uma iniciativa interessante: é a cartilha LGBTT, que presta um serviço inestimável de mapear, na quase totalidade dos partidos nacionais, como se posicionam em relação aos interesses do segmento LGBTT, quais são as chapas, integrantes simpáticos ou hostis, etc. Disponível neste link.

 


[1] a questão teve ampla divulgação nos meios de comunicação nacionais e locais, a exemplo de: http://www.folhavitoria.com.br/politica/noticia/2012/09/suplente-de-marta-e-contra-seu-projeto-sobre-uniao-gay.html

[2] http://www.partidodarepublica.org.br/partido/historia_do_pr.html. Não farei nesta crônica uma digressão sobre o tema do conservadorismo contido em certas fórmulas. Apenas noto que, se o limite da liberdade individual é a natureza, basta inscrever afetividades divergentes como não naturais para manter o status quo, como o senador Magno Malta fez em seu site pessoal: http://www.magnomalta.com/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=2097:magno-malta-continua-contra-casamento-entre-homossexuais&catid=27:outras-notas&Itemid=45

[5] a rejeição de Marina Silva pelo casamento gay foi amplamente divulgada em diversos meios de comunicação: http://www.estadao.com.br/ noticias/nacional  ,marina-se-declara -contra-casamento-gay,560871,0.htm

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 17 de Outubro de 2013

Tomboy (2005)

Dirigido por Céline Sciama. Tomboy certamente é um dos filmes mais impactantes sobre infância, descobertas e a (não) naturalização de papéis de gênero. O longa enfoca algumas semanas na vida de Laure (Zoé Herán), que ao se mudar para um novo condomínio com a mãe grávida, o pai e a irmã assume gestos, vestimentas e comportamento do gênero oposto, inclusive com um novo nome – Mickael.

O longa apresenta com grande sensibilidade um processo que poderia ser melhor descrito como uma experiência de transgenerismo. Assim, Laure processualmente passa a viver como Mickael fora de casa, e como Laure lá dentro. Neste sentido, é um mérito absoluto do filme apresentar tanto a desnaturalização da associação entre sexo e gênero (respectivamente macho e fêmea, homem e mulher) como nuançar uma realidade dada pela natureza que parece fortemente dicotômica. Ou se é uma coisa ou outra, não existindo negociação possível.

A experiência de Mickael/Laure demonstra, talvez, o contrário. Por um lado, existe uma bagagem da experiência anterior da protagonista sobretudo na forma de vestir e na escolha de elementos e brincadeiras que tem a ver com o universo masculino, ao lado da própria proximidade com o pai. Por outro, é a experiência concreta dele/a que dá um sentido generizado e transgenerizado para o conteúdo do filme. Em outras palavras, a barreira entre as meninas-molecas, que se divertem com brincadeiras de meninos e usam roupas mais masculinas ou unisex, e as meninas transgênero pode ser muito mais fluída do que o olhar do que o espectador pode esperar.

O filme, conteúdo, parece referendar uma experiência de transgenerismo por em alguns momentos fundamentais: na escolha persistente de um nome próprio, na opção deliberada por roupas masculinas, e até mesmo na adequação do corpo que era possível de ser realizada para uma criança com menos de dez anos. Sensível, o filme não disfarça os momentos de tensão e de repressão, mas sem carregar demasiadamente nas cores. Neste sentido, é interessante a fala da mãe, ao desmascarar a farsa da filha: “eu não estou fazendo isto para punir você. Mas eu não sei mais o que fazer. Se você tiver uma ideia melhor, diga agora mesmo”. O leva o telespectador a pensar, também, sobre o quanto arranjos binários são limitadores dos sujeitos que passam por experiências divergentes da norma, como naqueles que se relacionam com eles.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 17 de Outubro de 2013

Shortbus (2005)

Um filme desconcertante. Esta talvez seja uma definição possível para Shortbus (2005), película dirigida por John Cameron Mitchell, também diretor de Hedwig and the angry inch (2001). Rodado em cores fortes, o foco do longa são as trajetórias individuais de casais, gays ou não, em busca da satisfação de desejos pessoais reprimidos em contraste com os limites e traumas muitas vezes auto-impostos. Alguns em busca da felicidade, outros da salvação, ou de prazer, ou calor humano visitam a boate/cabaré Shortbus.

Numa New York de papel machê, o que fica em relevo são as fragilidades humanas, medos e neuras que persistem e frequentemente afetam a busca pela felicidade no presente. Este foi o caso da “protagonista” do longa, Sofia (Sook Yin-Lee), terapeuta de casais eternamente em busca do orgasmo; ou de Jamie (PH DeBoy) e James (Paul Dawson), casal gay marcado pela carência de confiança ao lado do excesso de cuidado; ou ainda Severin (Lindsay Beamish), prostituta dominatrix incapaz de se sentir realmente conectada com outras pessoas.

Numa proposta de tentar abordar as diferentes formas de amor, sem problematizar número de integrantes de uma relação, fetiches, diferenças etárias, etc., o filme pode ser entendido como um chamado pela busca do amor como prática, do encontro e afeto pelo outro e por si mesmo apesar de todas as limitações – e não em busca de aspirações ou representação impossíveis, contidas em fórmulas batidas.

Publicado originalmente no Núcleo UniSex, em 16 de Outubro de 2013

Um toque de Rosa: culturas, identidades e conflitos.

Eu vi um jovem gracioso na mesquita
lindo como a lua quando ela aparece.
Aqueles que o veem curvando-se para orar dizem:
“todos os meus desejos são que ele se prostre ainda mais”

(TORRÃO FILHO, 2000, p. 100)

Um toque de rosa (2004) foi uma surpresa relativamente agradável. A referência que eu tinha era a de um filme bobo, bastante açucarado e sem maiores problemas. Superficial, era o tipo de película para passar na sessão da tarde, na medida para um público adolescente. As discussões dos temas levantados pelo filme prometiam ser superficiais e mereceriam pouca atenção. Ledo engano. Por muito que não tenha sido um filme visceral, diversas discussões interessantes perpassam pelo filme.

O longa girou em torno da vida de Alim (Jimmy Mistry), um jovem e talentoso fotógrafo de origem paquistanesa e canadense, mas que vive em Londres com o noivo, Giles (Kristen Holden-Ried). Longe da família e falando o mínimo possível com os parentes tradicionalistas, Alim parece senão confortável, ao menos resignado com a separação (inclusive geográfica) entre estas duas instâncias da sua vida: a identidade de um jovem gay numa das cidades mais diversas do mundo, e a de um imigrante canadense de origem paquistanesa, parte da comunidade muçulmana egressa deste país. Este jogo, embora aparentemente harmônico, foi bastante tenso para o personagem, que inclusive criou uma espécie de ideal de comportamento: Alim, durante todo o filme, foi guiado em suas ações pelo espírito de Cary Grant, galã e ídolo hollywoodiano. Contudo, mais do que figura paterna, contraposta à mãe dominadora, Cary Grant encarna os valores de tolerância aparente e masculinidade da cultura ocidental. Ao ouvir um fantasma, o conflito de Alim se tornou muito claro ao telespectador: situado numa fronteira cultural entre valores herdados de um patrimônio coletivo identitário e o desejo homoerótico que não seria acolhido pela cultura paquistanesa. Daí tanto a fuga de Alim do Canadá, o seu desejo por Londres, como o desejo de separar as duas instâncias de sua vida, positivando o presente com a identidade “ocidental” e negativando o passado com a identidade “muçulmana”.

Esta frágil arrumação começou a se desfazer quando a mãe de Alim, Nuru Jahan, decidiu visitar o filho – motivada pelo noivado do sobrinho e os muitos questionamentos da comunidade sobre seu próprio filho que vivia distante e aparentemente sem seguir o script da vida de um bom crente: obter uma profissão reconhecida, casar-se e ter muitos filhos. Ela decide, pois, fazer pela segunda vez o caminho para a capital londrina, onde havia morado quando jovem, logo após enviuvar.

A chegada iminente da mãe colocou Alim em crise: recorreu ao seu “anjo” Cary Grant, e decidiu ocultar da mãe sua sexualidade, gostos e a vida de casal com Giles, seu namorado. A relação com Giles, nesta parte da película, se tornou mais complexa: por um lado, o namorado aparece como um contraponto plenamente integrado à cultura ocidental, apaixonado por Alim e disposto a ajudar o namorado no que puder, mesmo acreditando que a relação deles não deveria ser oculta, mas sim revelada para a mãe dominadora de Alim. Seguro de si e bonito, Giles apareceu como um sedutor – tanto de Alim como de sua mãe, Nuru, em momentos diferentes do filme, apesar de manter uma fidelidade rigorosa em relação à Alim. Apesar de ter encarado a situação com um bom humor desconcertante, Giles frequentemente encarou as demandas de Alim no que diz respeito às particularidades da cultura paquistanesa como questões menores, quase como caprichos bobos aos quais ele aceitava de maneira condescendente por amor ao namorado. Se em parte este comportamento foi inspirado pela verdadeira “desarrumação” da sua vida, já que passou da condição de namorado a de colega de quarto sem cerimônias, em parte este comportamento se explicaria por uma dificuldade em Giles de colocar os valores do namorado e da mãe no mesmo patamar que os seus próprio. A leitura que terminou fazendo foi a partir dos seus próprios valores, e não do caráter imperativo que os valores muçulmanos tinham (ao menos em certa medida) sobre Nuru, e, por extensão, sobre Alim. Assim, num certo momento do filme Giles e Nuru passaram um dia maravilhoso em Londres. Sedutor, Giles colocou Nuru no centro de um mundo fictício, feito de sonhos, desejos e memórias cinematográficas; o ponto alto deste “recomeço” – já que Nuru havia sido extremamente grosseira com Giles nos dias anteriores – foi quando partilharam uma garrafa de champanhe em um navio e turismo no rio Tâmisa. Nuru então abriu espaço para aquele que ela acredita ser um amigo de Alim, contanto as mágoas que tem com a capital inglesa, problemas na relação com o filho, e o que a moveu a buscar contato com ele em Londres: que ele se case com uma boa garota, e que retorne para o Canadá para assistir ao casamento do primo, etapa importante não apenas na vida de um muçulmano, mas também no seu papel e na posição de sua família dentro da comunidade. Viúva e longe do filho, Nuru gozava de uma posição desconfortável no Canadá justamente pela ausência de Alim, já que não pode capitalizar os sucessos do filho em seu benefício, nem cuidar dele e ajuda-lo a escolher uma boa esposa. De resto, o filme mostra com sagacidade os problemas da relação entre pais de países orientais com filhos que “fazem a América” (ou mais precisamente, o Ocidente europeu norte-americano) e terminam não apenas incorporando valores, mas assumindo demandas que são estranhas às gramáticas culturais nas quais se socializaram. Não se trata de dizer que uma cultura não possui determinado problema, ou não trata de determinada questão, como a homossexualidade ou o homoerotismo. Mas a solução que é culturalmente possível, em muitos casos, não apenas é divergente da ocidental como também parece despida de qualquer lógica ou humanidade. Foi neste terreno e transitando entre imperativos que no mais das vezes parecem inconciliáveis, que Alim precisou fazer as escolhas de vida que aparecem no filme como dadas – mas que na realidade, parecem dadas apenas quando a chave de tolerância e aceitação da homossexualidade é claramente possível. Psicologicamente, isto inclusive explica Cary Grant: em certa medida foi pelo olhar de seu “anjo” que Alim se tornou inteiro, integrado, unificando suas identidades discordantes num todo minimamente coerente (HALL, 2011, p. 32).

Observados estes detalhes, ficou evidente a enorme tensão apresentada num dos momentos mais importantes do filme: quando Nuru descobriu que Alim e Giles eram noivos, sua reação foi de choque e rejeição. Mas a reação de Alim em relação à tranquilidade e até satisfação de Giles também foi bastante hostil: ele compreendia as expectativas frustradas e o impacto que a revelação de sua sexualidade e vida afetiva e amorosa teriam sobre a mãe e a posição e Nuru na comunidade. Mas também compreendia que a tensão que fora aparentemente unificada pelo olhar de Cary Grant era frágil e estava novamente descolada. Alim a princípio se colocou numa posição de rejeição tanto da mãe como da sua própria cultura, tentando se apegar a posição que mantivera até ali. Sua opção, porém, foi duramente repreendida por Giles. Afinal, se ele dizia que a mãe era meramente uma paquistanesa atrasada, o que era ele próprio senão um paquistanês atrasado se fazendo passar por algo mais? Aqui, ficou evidente o limite que a empatia de Giles lhe permitia: por um lado, empático com a mãe de Alim e incomodado com o preconceito que este emprestava a sua mãe; mas por outro infantilizando as reações de seu namorado e de sua mãe, que eram exageradas. Para um gentleman inglês, aquilo parecia meramente um erro de comunicação e drama por uma questão de menor importância. Aqui o alto, loiro forte e sedutor Giles encarnava curiosamente alguns dos filmes apreciados por seu amado Alim: ele se parece bastante com a figura do heroico colonizador em filmes como Gunga Din, destinados ao elevado papel de civilizar os bárbaros ocidentais. Este filme, citado pelo fantasma de Cary Grant como uma película para acalmar Alim, possui uma das construções mais caricatas e infantilizadoras sobre os súditos do império britânico colonial na Índia (SILVEIRA, 1996. p. 191). Mesmo que seja uma coincidência, explicita a imagem que o Ocidente criou sobre o Oriente, com o propósito de um elogio da dominação (SAID, 2008, p. 25) – e que parece compartilhada tanto por Giles quanto pelo fantasma de Cary Grant, sendo o primeiro a sedução do soft power, e o segundo a  dominação mais clara e simples, evidenciada nos filmes tão apreciados por Alim – e também por sua mãe, Nuru, que viveu em Londres na juventude com o objetivo de se igualar as heroínas que via nas telas do cinema.

O terço final do filme, aproximadamente, se passou no Canadá, quando Alim decidiu participar do casamento do primo e tentar pelo menos uma aproximação com a mãe. Abalado com o fim do relacionamento que fora precipitado por Giles, Alim parecia ao mesmo tempo saudoso do senso de comunidade que parece então evidente no casamento, e incomodado com sua participação, que despertava curiosidade nos vizinhos. Acostumado a um respeito quase obrigatório da privacidade pelos fleumáticos ingleses, a curiosidade – que é a norma de uma sensibilidade diferente da ocidental – desconcertou Alim, que aceitou participar do ritual de despedida de solteiro do primo, mesmo que na defensiva. A razão ficou explícita algumas cenas depois, quando o primo de Alim, Khaled (Raoul Bhaneja) presença ausente mais incômoda para o telespectador, já que encarnaria um modelo de masculinidade e do papel social do homem, se revelou como uma fraude. Apesar de estar se casando, no dia da despedida de solteiro ele revelou sua atração por homens, e o desejo de transar com o primo. Caindo de bêbado, Khaled também demonstrou a solução que dá a relação entre religião e sexualidade: o casamento só poderia ser realizado com uma mulher, destinada a lhe dar muitos filhos e netos aos seus pais. Os homens são para a busca do prazer sexual, mas não para o casamento, noivado, laço afetivo. O fato de Alim não entender esta verdade aparentemente elementar foi o motivo de seu afastamento do local e do sofrimento decorrente daí. O que Khaled não imaginava foi à chegada de Nuru, que ouviu a conversa e a confissão do sobrinho modelar, que havia inclusive pago pela sua viagem para Londres. A tensão de Alim se tornou, então, evidente para a mãe, inclusive do ponto de vista das escolhas, do afastamento e do amor que seu filho devotava ao namorado. Ao mesmo tempo, a solução que Khaled dava para as demandas de sua sexualidade e o seu papel na comunidade foi apresentada como uma opção hipócrita e despida de significado verdadeiro. Contrasta tanto com o amor divergente de Giles e Alim, como com o amor convergente de seus próprios pais ou de sua tia e falecido tio. Khaled encarnou, no filme, a realidade dura que a devotada mãe de Alim não via ou fingia não ver: que a homossexualidade não é fruto da convivência com a cultura ocidental, ou uma dimensão à qual o Islamismo (no sentido das diferentes comunidades islâmicas pelo mundo) responda de forma multiforme. Na não-aceitação da homossexualidade existem graus distintos e soluções distintas. Inclusive, soluções de tolerância e espaço para a traição e relações marginalizadas, que a comunidade e as esposas optam por não ver. Este trecho do filme, aliás, ecoa a obra de Pasolini, As mil e uma noites onde um poeta muçulmano africano tem uma posição de destaque que não se desfaz ou foi corroída devido ao relacionamento explícito entre ele e três rapazes. Historicamente, a relação entre a homoafetividade e o Islamismo não se reduz a configuração contemporânea; em verdade, existiu uma ambivalência e até mesmo momentos de tolerância (TORRÃO FILHO, 2000, p.p. 98-104), à qual o filme pareceu dar espaço. O poema da epígrafe, neste sentido, um ótimo exemplo. Dada à segregação de gênero no ambiente da mesquita, apenas um homem poderia dizer aquelas palavras e apreciar um rapaz, belo como a lua, em suas orações.  O fato de ter ocorrido em solo sagrado demonstra uma relativa tolerância em relação ao desejo de um homem por um rapaz. E este é um dos exemplos mais pudicos da poesia homoerótica na Espanha muçulmana. Esta ambivalência não está apenas temporalmente situada no passado, ela é um subproduto da nossa contemporaneidade, especialmente no caso de enclaves de origem cultural e social distintas, como no caso da comunidade paquistanesa no Canadá. O reverso da atração exercida por um ocidente como local de oportunidades, e que levou a ondas de imigração foi à demanda de negociar entre as identidades herdadas do passado, e as opções de identidades distintas que eram possíveis no novo contexto, sobretudo nos países que formam o centro do capitalismo global (HALL, 2011, p. 88). E isto vale, inclusive, para as identidades que são propostas a partir de novas possibilidades de viver o homoerotismo, no caso de Alim.

Deste trecho em diante, o filme caminhou rapidamente para o final: ocorreu o casamento, no qual o fantasma de Cary Grant apareceu vestido com as roupas típicas do estereotipo do colonizador, tentando aconselhar Alim; mas o personagem parece menos perdido entre as identidades sobrepostas de homem muçulmano e gay. Prova deste fato foi o beijo publico entre Alim e Giles, em pleno casamento do primo, numa cena que embora seja condizente com a proposta de uma comédia romântica, foi extremamente pouco verossímil. Menos pelo beijo, e mais pela reação de incomodo decoroso da comunidade, que não reagiu ao gesto de carinho homoafetivo do casal, que, reconciliado, se retirou da festa, seguidos de Nuru que explica enigmaticamente a irmã a razão de sua própria saída. A personagem não se sente confortável em compartilhar da hipocrisia aparente da festa, que ocultava a sexualidade de Khaled e referendava seu papel na comunidade.

Alim e a mãe terminam por se reconciliar de uma forma não muito clara. Nem Alim nem Nuru chegam a um consenso se o conjunto de ofertas que a cultura ocidental faz aos personagens foi bom ou ruim. Mas parecem concordar que a solução não é nem um pouco simples: por um lado, a decorosa viúva começou a rever suas escolhas, inclusive no plano afetivo. E a encarar com uma naturalidade misteriosamente adquirida em poucos momentos a relação homoafetiva de seu filho. Já Alim assumiu uma posição mais autônoma na condução de sua própria vida. Terminou por aceitar a sobreposição de identidades, no lugar da segregação territorial e emotiva que mostrava no começo do filme:

O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas a um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda história sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu”(…) A identidade plenamente unificada, completa, segura, e coerente é uma fantasia. (HALL, 2011, p. 13)

Por fim, assumindo que a “crise de identidade” podia encetar novas soluções potenciais para um relacionamento homoafetivo, Alim se sentiu seguro o suficiente para desistir da tutela incômoda de Cary Grant, seguindo a vida com Giles. Esta opção representou, contudo, algo mais. Numa época de globalização, não é de admirar que as identidades sobrepostas procurem uma resposta que hierarquize e segregue menos. Em outras palavras, que Alim deixe de lado as respostas de Cary Grant, recendentes ao imperialismo mesmo que com a melhor das intenções. Queria ou não, Alim operou e opera com duas identidades distintas de maneira simultânea.  Cabe a ele transigir, colar, negociar as diferentes condições as quais ele se costura com a sociedade, em perpétua ligação – e não negação – com o passado, a tradição, a cultura. Na modernidade tardia líquida, esta opção não é sem sentido ou alienada: mas é uma possibilidade, inclusive, de resistir a uma posição de total alinhamento, seja em direção ao dogmatismo (no caso, religioso) ou ao niilismo. Contraditório, a mensagem mais interessante com o personagem Alim é a da administração das diferenças. No labirinto das identidades, é preciso não se deter numa parede sólida, mas procurar a possibilidade de outros caminhos em direção ao diálogo e a tolerância.

Referências:

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na pós-modernidade. 11ª Edição. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2011. 102 p.

TORRÃO FILHO, Amílcar. Tríbades galantes, fanchonos militantes. Homossexuais que fizeram história. São Paulo: Edições GLS, 2000. 294 p.

SAID, Edward. Prefácio da edição de 2003. In: Orientalismo.  O oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008. p.p. 11-26.

SILVEIRA, Renato da. Simba, o leão sanguinário: Revolta dos Mau Mau, cultura e marketing político. O Olho da História, v. 1, n.3, p. 191-216, 1996.

 

Desejo Proibido (If These Walls Could Talk 2, EUA, 2000)

If these walls could talk 2, título original do filme Desejo Proibido é uma obra que trata do amor entre mulheres através do tempo. Tendo por base as vicissitudes de casais lésbicos que viveram na mesma casa durante cinquenta anos, o filme mostrou com humor e delicadeza as maneiras como a homossexualidade foi vivida por alguns e enquadrada por outros ao longo deste período. Protagonizado por nomes de peso, como Vanessa Redgrave e Sharon Stone, além da presença da apresentadora americana Ellen DeGeneres, o filme funcionou bem como um chamado a reflexão sobre sexualidades e preconceitos.

O primeiro momento, que se passou no começo dos anos 1960, retratou os dilemas de Edith (a magistral Vanessa Redgrave) que perdeu sua esposa de toda a vida, Abby (Marian Seldes) e precisou lidar com a dor da perda ao lado da invisibilidade e do preconceito contra sua orientação sexual. O curta tem dois momentos, por assim dizer, interligados pela sequência da morte de Abby no hospital: o primeiro mostra o mundo seguro que as duas haviam criado em sua residência, afastada de olhos curiosos; o segundo, o desmonte deste mundo seguro pelo sobrinho e herdeiro de Abby, Ted, acompanhado de sua própria família. Em pauta a crueldade tremenda de se negar a união homossexual e por consequência falta de direitos e insegurança jurídica que daí decorre. De certa forma, o tom sombrio de tragédia esteve em consonância com a geração dos anos 1950 e começo dos 1960, marcada pelo medo da guerra mundial e um recrudescimento dos costumes à luz do macarthismo e da rejeição de tudo que fosse sequer um pouco dissonante de rígidos padrões morais.
O segundo momento teve lugar nos anos 1970. Desta vez, o foco foi um grupo de amigas lésbicas, estudantes da universidade e que se identificavam com os ideais do nascente movimento feminista, passando a questionar a condição de mulheres e de padrões de comportamento que são impostos ao gênero feminino. O filme se torna mais interessante quando uma delas, Linda (Michelle Williams) se apaixona por uma lésbica que se veste e se comporta como homem, chamada Amy (Chlöe Sevigny) para desagrado das amigas que viam neste jeito de ser mais masculinizada uma forma de opressão que precisava ser algo a ser combatida e deixada de lado. O preconceito, assim, foi demonstrado no filme tanto no movimento feminista que rejeitou o grupo de amigas em função de sua homossexualidade, sobretudo quando elas se recusaram a permanecer numa condição de invisibilidade; quanto entre as próprias amigas de Linda que tiveram um olhar preconceituoso sobre as lésbicas que usavam roupas, gestos e hábitos associados ao masculino.

O terceiro curta-metragem, ambientado nos anos 2000, retratou os dilemas de Fran e Kal (respectivamente Sharon Stone e Elle DeGeneres) um casal que desejava ter filhos e passou a lidar com problemas associadas à formação de famílias por casais GLBTTT, fosse com doadores que não teriam contato nenhum com a criança, fosse à eleição do melhor sêmen de um banco, fosse ainda a dilemas existenciais mais abstratos: Fran lamenta que a fecundação de Kal seja algo que requeira planejamento tão preciso, e não apenas um acidente, fruto de uma noite de amor; ou ainda a tristeza de Kal de trazer uma criança a um mundo repleto de preconceitos.

Em seu conjunto, tratou-se de uma obra consistente, embora desigual na qualidade dos curtas: os dois primeiros, pela proximidade temporal e pelo nó de transformações sociais que englobam as décadas de 1960 e 1970 dialogam entre si com enorme sucesso. O primeiro curta-metragem coloca em pauta questões como importantes e que tocam de perto o século XXI: o preconceito contra homossexuais tanto na modalidade direta, numa cena na qual Edith e Abby vão ao cinema e são vítimas dos risinhos de jovens; quanto institucional, quando o Estado não ofereceu qualquer garantia social para Edith, que viu o lar e seu mundo despedaçado com a morte da parceira, sem puder buscar qualquer forma de auxílio ou reconhecimento de direito. Outro tema que foi colocado em pauta e que permaneceu em discussão no universo GLBTTT é o da vida de gays maduros e idosos. A sensação de perda, no caso de Edith é devastadora não apenas pela perda em si, como pela impossibilidade de expressar, compartilhar e vivenciar seu luto em qualquer esfera de sua comunidade: seja na interação com funcionários do hospital, ou pessoas passando por situação semelhante até a família, todo laço de afeto que construiu foi silenciado em nome de dolorosa proteção da invisibilidade.

O preconceito retratado na primeira parte do filme adquiriu uma natureza diferente no segundo curta-metragem. Ele se matiza, e passa a ser percebido não apenas nas instituições sociais como universidade ou movimento feminista; mas individualmente, dentro de cada um e cruzado com preconceitos de classe, por exemplo, em diálogo ora harmônico ora tenso com as diversas identidades que a modernidade permite que sejam assumidas (HALL, 2011, p. 19-20). O grupo de lésbicas marginalizado pelo movimento feminista também marginalizou aquelas que frequentavam um bar (descrito como uma espelunca) e que não correspondiam ao seu padrão de mulher e na forma de se vestir. Neste sentido, o debate sobre conservadorismo e revolução que esteve no cerne da contracultura nos anos 1960 e explode em 1968 ganhou outros contornos: houve movimentos do Maio de 1968 que mais tarde assumiram uma mensagem reformista (e até mesmo conservadora) com razoável grau de sucesso. O movimento feminista que marginalizou as lésbicas parece representar este grupo (Remónd, 1983). Isto não implica um juízo de valor, mas sim que pelo menos em certos setores do movimento feminista a aceitação era condicionada a certos critérios – no caso, orientação sexual.

O terceiro filme foi o menos bem amarrando dos três. A razão é simples: primeiro, passaram-se quase quarenta anos entre o segundo e o terceiro curta-metragem. Assim, foi mais difícil reconhecer o mesmo debate dos primeiros. O preconceito apareceu, mas dando a entender ser muito mais fraco do que nos anos 1960 e em 1970. Nisto reside talvez um problema do filme: retratar as transformações do preconceito pensando não em de que forma ele se tornou mais sofisticado ou sutil; mas sim do ponto de vista otimista (ainda que não sem razão) de que ele teria se tornado mais fraco. Como o casal termina sendo construído de forma mais “quadrada” – monogâmico, socialmente bem de vida, com acesso a bens e serviços que exigiriam alto poder aquisitivo, no que parece a adoção do pink money – os dilemas são menos salientes neste curta.

Na sua totalidade, porém, mereceu ser assistido. Pela atuação inspirada de Vanessa Redgrave no primeiro filme, que comunicou toda a dor da perda de uma esposa ou de referências seguras, sem artificialidade ou exagero. E mais ainda pelas questões que o segundo curta lança de forma leve e bem humorada – mas que escondem, por exemplo, um chamado a autocrítica dos nossos próprios preconceitos, mesmo quando numa posição de marginalidade.

Referências:

HALL, Stuart. A Identidade cultural na pós modernidade. 11ª Edição. Rio de Janeiro: DP&A, 2011. 102 p.
RÉMOND, René. Seculo xx: De 1914 aos nossos dias. 3ª edição. São paulo: Cultrix, 1982. 3v.

(Artigo originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 24 de Julho de 2013)