Praia do futuro: impressões.

Sábado de noite, e o programa escolhido foi assistir praia do futuro. Eu, meu namorado e um casal de amigos. Expectativas muito grandes depois de uma fala de Wagner Moura que o filme não era gay… Sessão mais para o fim da noite no UCI Barra, inaugurado a poucos meses. O publico era bem diverso. Gays, héteros, lésbicas, a maioria próxima dos trinta anos, mais ou menos.

Destaque para as reações do público ao filme. Num universo de cem pessoas ou pouco mais, pelo menos dez pessoas saíram durante a sessão. Um grupo delas protestando sobre o nojo que sentiam das cenas de sexo, considerando um absurdo aquele tipo de coisa nas telonas. Um homem mais velho chegou mesmo a se levantar exclamando em voz alta que aquilo era demais, durante uma das cenas entre Donato  (Wagner Moura) e Konrad (Clemens Schick). Saiu da sala, o que não deixa de ser uma lástima: na ânsia de afirmar sua masculinidade fora de toda a dúvida, me atrapalhou de ver o filme… Neste sentido, podemos pensar que Praia do Futuro tem o mérito de evidenciar os processos poucos visíveis, mas muito significativos,  pelos quais se arquitetam os modelos de ser homem, especialmente de uma masculinidade compulsivamente heterossexual, machista e homofóbica. O incômodo demonstrado pelo espectador que se lastima do excesso que o filme demonstra vem da necessidade de se afirmar enquanto homem por via de uma tripla negação: não ser mulher, não ser criança, e não ser homossexual (BADINTER, 1993, p. 34). Necessidade compulsiva toda vez que um afago é substituído por um soco. Obsessiva, pois necessita de uma vigilância permanente de cada abraço ou aperto de mão, cada toque ou olhar. Imperativa, pois o menor sinal de desvio deve ser aniquilado. Eis um componente do modelo de masculinidade que serve de base para o comportamento do homem que se levantou, indignado, oprimido pelo imperativo de reafirmar sua masculinidade heterossexual diante de todos os outros presentes no cinema, performance que a muitos ainda parece indispensável e sinônimo de segurança e de costura das subjetividades internas que garantiria a boa ordem do mundo (HALL, 2012, p.p. 12-18).

Contudo, segurança frágil porque ilusória, como o rapaz provavelmente percebeu – mesmo que não tenha confessado isto senão ao seu travesseiro. Outras formas de masculinidade, ou seja, daquilo que constitui, que é próprio do masculino, estão em emergência. O gênero não é atemporal, mas criado socialmente na relação entre homens e mulheres em cada tempo e lugar determinados. A segurança aparente que a afirmação da masculinidade do indignado abre espaço para mostrar que existem outras possibilidades que subvertem hierarquias e borram a oposição entre pólos que parecem definitivamente afastados e estanques (SCOTT, 1995, p. 86). Não foi qualquer cena de beijo que deixou nosso pobre (de espírito) homem inconformado, foi a cena de sexo entre dois homens, e mais: a cena que pressupunha que um dos dois rapazes profundamente masculinos, barbados, atléticos seria passivo. Foi no exato momento que o ator do capitão nascimento, personagem com a macheza acima de qualquer duvida, deixou que outro homem tocasse sua bunda, evidenciando desejos e preferências sexuais. Mais do que o telespectador podia suportar imaginar, quem dirá ver! Imbróglio tão sério que gerou explicações apressadas e no minimo curiosas de um gerente do Cinépolis, diante da necessidade de avisar explicitamente e carimbar nas entradas que se tratava de um filme com cenas de sexo entre dois homens, fato que precisava ser deixado claro para evitar… o que? Reclamações futuras? Desespero de ver o descentrar e estilhaçar de valores que parecem socialmente muito naturais?

Colocando o dedo na ferida, Karim Aïnouz produziu um filme que merece dois qualificativos poderosos. O primeiro a de filme subversivo, porque questiona e desloca questões que parecem naturalmente corretas na sociedade, tirando os telespectadores (héteros, homos, gays, lésbicas) da zona de conforto: as cenas de sexo mostram afeto, carinho, desejo e tesão. Não são as cenas assépticas do cinema de enlatados norte-americanos, nem sequer as cenas de sexo de cueca que a rede Globo exibe: são cenas de transa, onde os corpos transpiram de desejo com gemidos, dor e prazer.  O segundo qualificativo, a meu ver e para desespero de Wagner Moura é que se trata, sim, de um filme gay. Não apenas uma tônica gay, mas problematizando e complexificando as questões em torno de homens gays: a descoberta associada a necessidade de viver experiências de relacionamentos com outros homens longe de casa, problemas associados a conflitos entre lugares sociais prescritos e desejos pessoais, sem falar no próprio imbróglio das posições sexuais mais ou menos masculinas, para desespero dos g0ys – questão subjacente no ocidente desde ao menos a época da Inquisição. Um filme que poderia ser descrito como sobretudo gay, indicando questões que são objeto de debate e de ansiedade para muitos jovens que, descobrindo os prazeres homoeróticos se deparam com os limites e as possibilidades da sexuais, amorosas, identitárias.

O filme não é perfeito. Apesar de lançar generosamente uma miríade de questões para debate, não se prende a nenhuma delas. Se o fio condutor é a experiência e as relações afetivas e familiares de  Donato, contrapostas primeiro como lugares prescritos e desejos proibidos, e depois da fuga de responsabilidades que retornam para cobrar a fatura, Aïnouz se preocupa mais com o panorama do que com as derivações dele. O telespectador está autorizado a sair do cinema com uma opinião aberta ou fechada sobre a experiência gay de Donato, do seu sucesso ou fracasso, dos seus problemas escolhas, cicatrizes e cruzes.

O filme possui, entretanto, uma mensagem que pode ser descrita como otimista. Ao perguntar ao irmão de dez ou onze anos o que ocorreria se sumisse no mar, o garoto responde que iria salvar Donato, mesmo detestando a agua. De uma forma inesperada é o que termina acontecendo quando Ayrton (um ótimo Jesuíta Barbosa) vai a Alemanha em busca do seu herói do passado, que por sete anos não havia tido qualquer contato com a família. Decidido a achar Donato, aprendeu alemão e não se deteve até obter a resposta de uma questão mal resolvida entre eles: como conciliar seu herói, o modelo de homem na infância com o  homem que foi encontrar na Alemanha sete anos depois.

Referências:
BADINTER, Elizabeth. XY: sobre a identidade masculina. Tradução Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise Histórica. disponível em: http://pt.scribd.com/doc/89392865/Joan-Scott-Genero-uma-categoria-util-de-analise-historica . Acesso dia 19 de mai de 2014.

WAGNER Moura sobre praia do futuro. In: http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/cinema/2014-05-06/wagner-moura-sobre-praia-do-futuro-e-mais-do-que-o-filme-do-cara-gay.html . Acesso dia 19 de mai de 2014.

CINEMA alerta cliente sobre cenas de sexo em “Praia do Futuro” e provoca polêmica nas redes sociais.In:http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/cinema-alerta-cliente-sobre-cenas-de-sexo-em-praia-do-futuro-e-provoca-polemica-nas-redes-sociais/ . Acesso dia 21 de mai de 2014.

Originalmente publicado no Nùcleo UniSex, em 21 de maio de 2014

O primeiro que disse (Mine Vaganti, 2010)

Nesta interessante comédia, dirigida por um inspirado Ferzan Özpetek, encontramos uma situação diferente da usual saída do armário: quando Tommaso (Riccardo Scamarcio) retorna a sua cidade natal decidido a dizer à família que é gay e deseja ser escritor. Ali, procura o apoio do firme irmão mais velho, Antonio (Alessandro Preciosi), espécie de diretor geral da companhia de alimentos que a tradicional família Cantone administra há décadas. No jantar formal, em que um novo sócio ingressaria na direção da empresa, somos surpreendidos com uma confissão de Antonio: que era gay, tinha um relacionamento com um ex-empregado e que desejava apoio dos pais. Vicenzo (Ennio Fantaschini) termina sofrendo um infarto depois de uma violenta discussão com o filho, e implora a Tommaso que fique e assuma o lugar de Antonio na empresa. No armário afetivo e profissional, o mais novo dos Cantone termina sendo obrigado a viver exatamente da forma como não queria: submetido as expectativas dos país, longe do namorado, Marco (Carmine Recano) e pressionado de todos os lados para dirigir a fábrica.

Por algum tempo, acompanhamos o esforço de Tommaso em tentar dar conta do problema, sem dar (muita) pinta. Nisto é ajudado pela irmã, Elena (Bianca Nappi) a quem associou a direção da empresa, e pela avó (Ilaria Ochinni), a doce e sarcástica fundadora da empresa exasperada com a inabilidade de Vicenzo em lidar com um filho homossexual, com o autoritarismo da nora, Steffania (Lunetta Savino), e o alheamento da filha, Luciana (Elena Sofia Ricci).

Embora aparentemente patriarcal e centrada na vontade de Vicenzo, a família Cantone tem arranjos subterrâneos muito interessantes, que demonstram que modelos de comportamento e de conduta são muito mais aparentes do que compulsórios, numa espécie de soft-power. Doloroso, certamente, mas com possibilidades de readequamentos e de negociação. O próprio Tommaso é um exemplo disto: sem desejar o lugar do irmão e a carreira de administrador, o jovem vive em Roma com relativa liberdade para se relacionar com outros homens e cursar Letras, em lugar de Administração, sem que família saiba. Da mesma forma, a avó foi apaixonada na juventude por Nicola, o irmão de seu marido e avó dos rapazes. Este romance impossível não impediu que a familia florescesse e a fabrica se tornasse maior e mais rica – mesmo que o contato de ambos se restringisse ao toque de mãos durante o preparo da massa.

O filme facilmente encanta o telespectador. Não apenas pela comédia de algumas cenas, mas pela profunda humanidade dos personagens, mesmo quando demoram um pouco a demonstrá-la. Este é o caso de Luciana ou de Elena: mulheres desconfortáveis em seus papéis, limitadas por espectativas de pais e irmãos, terminam criando maneiras criativas de sair de uma posição subalterna, ou, ao menos, de negociar os termos de sua subalternidade.

Sem apontar para soluções fáceis, também é um filme que fala de sacrifícios – não apenas em prol da família ou da fábrica, mas até mesmo em prol daquilo que se deseja obter. O preço a ser pago muitas vezes é alto – Tommaso revela, no final do longa, que não deseja administrar a fábrica, que prefere ser escritor, muito embora silencie sobre o armário. Mas quase sempre vale a pena, mesmo quando vive nas lembranças de um passado mais dourado: seja para a nonna e seu amado Nicola, seja para Luciana e a fase da juventude passada em Londres ao lado do namorado cantor de rock, seja no caso de Antonio na eterna busca do amado Michele, a quem despediu por medo da descoberta. Ou na aceitação da carreira escolhida por Tommaso, elemento que parece sugerido nas últimas cenas do filme.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 17 de abril de 2014

A difícil caminhada de ser pai e ser gay: Parte II

Depois de algumas semanas, retomo o tema de Janeiro. Desta vez, tentarei dar conta de dois fenômenos. O primeiro diz respeito aos comentários sobre a foto de Kaleb e Kordale, o casal gay com duas filhas que tanto furor causou algumas semanas atrás – e que, como de hábito, foi esquecido pela Internet.

Um dos grandes problemas na argumentação dos leitores, sobretudo brasileiros, era a dificuldade de conceber como aquela união poderia caber dentro do conceito de família. Numa sociedade ainda profundamente influenciada por valores cristãos e patriarcais famílias homoparentais tem o potencial de mostrar as fraturas da ideia compartilhada que diversos setores de sociedade fazem do que seja família.

Não se trata de dizer que a sociedade não absorve famílias diferentes do padrão marido\trabalho esposa\lar e filhos. Desde muito antes da lei do divórcio mulheres ocupam o papel de chefes de família, não raro com uma autoridade que se sobrepõe, inclusive, a do marido. Agora, em termos de ideias de família, as estratégias narrativas resultaram, historicamente, por valorizar uma família nuclear e patriarcal. Sancionada pelo direito civil pelo menos até 2002, e por valores morais desde então. Basta colocar como exemplo um diálogo para ilustrar este ponto: ao falar de transgressões de uma jovem, as distintas senhoras reunidas lembravam que a maior culpada era a mãe. Além de liberal, trabalhava fora e negligenciava seu papel maior, de guia moral da família, sobretudo das filhas. Inclusive reprimindo, quando necessário, comportamentos que parecem indesejáveis ou fora do padrão. Voltarei a isto mais embaixo.

De qualquer forma, o incômodo de Kaleb e Kordale é mostrar que existe felicidade e satisfação além dos estreitos contornos dos ideias socialmente difundidos e tornados hegemônicos ou passíveis de hegemonização nas sociedades – sobretudo na nossa. Trocando em miúdos: o mal estar de uma família que desconstrói papéis sociais e os organiza em termos diferentes revela que existem outras possibilidades de família, sem abdicar de amor, afetividade e felicidade.

Na coluna passada eu disse que a hegemonia se baseia na ignorância. Ignorância leva a raiva, a raiva ao medo, e o medo ao sofrimento e a morte. Consequência irreversível da dificuldade de equacionar família, homossexualidade e aceitação levou aos comentários contra as fotos de Kaleb e Kordale. Sejam travestidos de desejo de preservar a privacidade do casal e das famílias, como se esta ideia não tivesse uma esfera de publicidade; seja na forma de violência explícita, uma das quais chocou o Brasil nos últimos dias, e levou a uma carta emocionada do deputado federal Jean Wyllys. Um pai matou o filho a pancadas para que ele aprendesse a ser homem. Matou a sangue frio, sem se importar com a aniquilação do futuro de uma criança. Tudo em nome de um ideal de paternidade e de masculinidade que são opressores. Não apenas para homossexuais: mas também para heterossexuais, muitos dos quais se comoveram com o crime. O comportamento do pai precisa ser colocada em correlação com as palavras de pessoas como o deputado Federal Jair Bolsonaro, para quem a cura para meninos femininos são as agressões. Muito bem, deputado. Este possível eleitor carioca seguiu a sua cartilha. Agora talvez seja necessário esperar a sua resposta a este crime!

O que une a experiência do jovem Artur, brutalmente morto por seu pai e a de Kaleb, Kordale e suas filhas? Algo muito simples. O primeiro é a prova maior do quanto o modelo de família que passava pela cabeça dos críticos de Kaleb e Kordale, que tentam instruir sobre o que é próprio do “ser homem” e “ser mulher”, punindo duramente seja de forma física ou psicológica as transgressões é problemático e precisa ser repensado. Quais as características centrais para um modelo de família? Ensinar uma filha a ser mulher e um filho a ser homem, ou transmitir amor, carinho, compreensão e, acima de tudo, aceitação? O segundo, com o exemplo de Kaleb e Kordale é mais esperançoso: a possibilidade de ser diferente e de transcender preconceitos está ai. É preciso ter coragem para viver estas novas possibilidades, e lutar para que elas sejam implementadas. Lutar com o voto, lutar para ter uma família feliz, lutar para que instituições como escola ou comunidade se adequem a estas novidades. E ter esperança.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 03 Abril de 2014

Orações para Bobby

Morte e redenção em Orações para Bobby *

Dentro da comunidade gay, poucos filmes devem gozar da mesma importância de Orações para Bobby, longa-metragem para tv dirigido por Russel Mulchay. Produzido para tv em 2009, trata-se de um dos filmes mais comentados da comunidade gay, praticamente constando como uma unanimidade no quesito importância e relevância da produção. Em tempos de fundamentalismo religioso militante e raivoso, agressivo, constitui um hino contra a intolerância do fundamentalismo cristão.

O filme se baseia na experiência real de Bobby (Ryan Kelley) e sua mãe, Mary Griffith (uma inspirada Sigourney Weaver), mãe de família profundamente cristã, a partir da descoberta da homossexualidade de seu filho mais novo, Bobby Griffith. Com enorme dificuldade em lidar com a descoberta do filho, a única saída possível para Mary aparece na forma de um tratamento psicológico aliada a uma estratégia de busca de conforto religioso que permitiriam a Bobby superar sua “doença”. Progressivamente, o jovem entra numa espiral de tristeza profunda, alimentada por uma dolorosa aceitação da própria homossexualidade acompanhada por enormes conflitos com a mãe, até o ponto do rompimento: decidido a viver sua sexualidade e o amor pelo namorado em outra cidade, Bobby termina rompendo com a família e indo morar em Portland. Uma vez lá, a distância marca muito mais o desenraizamento de Bobby – alheado, por um lado, do núcleo familiar, e, por outro, do namorado que o traiu – do que a liberdade que o rapaz aspirava. Entendendo que não tinha opções, Bobby termina retirando a própria vida, numa bela cena, que passa com maestria a confusão e desamparo do personagem.

A morte de Bobby marca a clivagem central do filme, e divide muito claramente os dois momentos que a personagem de Mary vive. Se o primeiro é marcado pelo endurecimento de sua visão de mundo, passando a normatizar e controlar não só as amizades, mas, até mesmo, o jeito de corpo do jovem Bobby, o segundo momento do filme acompanha o processo de redenção de Mary; não apenas pela aceitação da homossexualidade do filho e revisão e mudança de seus atos anteriores, mas, igualmente, por uma tomada de posição a respeito disto: se antes a preocupação de Mary estava nas implicações terrenas|sociais e além-vida da homossexualidade do filho, agora a morte e a descoberta das dores e sofrimentos de Bobby terminam por marcar uma completa reconfiguração de mundo para Mary. De fundamentalista cristã, empenhada na leitura literal dos versículos que supostamente condenam a homossexualidade, Mary se converte em uma militante pró-direitos LGBTT, profundamente preocupada com o efeito dos discursos homofóbicos, sobretudo os de orientação cristã fundamentalista sobre jovens homossexuais. A redenção de Mary é o tema desta segunda parte, e a militância termina por funcionar como catalizador do processo de perdão e da possibilidade de seguir em frente, reconciliando o passado e tentando um futuro melhor.

Com atuações boas e cenas comoventes, é o tipo de filme-bomba que poderia ser exibido a pais religiosos de jovens gays, pouco atentos as consequências funestas do seu preconceito. Rapidamente o telespectador cria empatia com Bobby, o tipo de rapaz perfeito, assim como passa a ter compaixão por Mary, com o adicional de colocar em xeque dogmas religiosos não por meio de oposições a doutrina as igrejas cristãs, mas por ministros religiosos que propõem outras interpretações da Bíblia. Neste verdadeiro “caminho do meio” o filme coloca na agenda da mensagem cristã o respeito e aceitação de outras formas de amor, constituindo uma plataforma poderosa para abalar certezas de religiosos convictos.

Mesmo com os problemas de um filme para a tv, como por exemplo um excesso de didatismo na primeira parte, e uma tendência a “correr” com processos de descoberta e aceitação dos personagens, não deixa de ser um dos filmes mais interessantes do gênero.

* O filme é baseado no livro de Leroy Aarons, Prayers for Bobby: A Mother’s Coming to Terms with the Suicide of Her Gay Son, editado em 1995, contando a história de Mary, e conta com excertos do diário de Bobby

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 1 de abril de 2014

Entre nós: Uma comédia sobre a diversidade

Por Daniel Silva & Paulo Duarte

Entre nós, comédia dirigida e escrito por João Sanches é um texto magistral. Partindo de uma provocação sobre o tema da diversidade sexual – entendida como e diversidade de práticas sexuais, mas, sobretudo, de afetividades – o espetáculo gira em torno da descoberta do amor entre dois adolescentes, típicos (ou nem tanto) estudantes de ensino médio. Aliás, o grande mérito do texto parte daí: uma brincadeira inteligente com esteriótipos. Narrado da perspectiva de um rapaz “perfeito”, popular, esportista, bonito, estudioso chamado Rodrigo (Igor Epifânio), que se descobre apaixonado pelo misterioso, mimado, sarcástico e discreto Fabinho (Anderson Dy Souza). A partir daí, o texto se desenvolve em torno das tentativas desajeitadas por parte de Rodrigo para chamar a atenção e conquistar o amor de Fabinho, com os atores se revezando em interpretar outros personagens, um mais hilário que o outro.

Passando por descrições bem-humoradas de situações que grande parte dos jovens gays passaram – como por exemplo perder a virgindade, a pressão familiar e dos amigos para ter uma namorada, o espetáculo tem o mérito de criar empatia entre o público e o dilema dos personagens. Numa das cenas mais hilariantes do espetáculo, o pai de Rodrigo leva-o ao bordel de Dona Carmem, desejando que o rapaz perca logo a virgindade numa casa de luz vermelha com a mesma senhora que desvirginou todos os homens da família. Longe de criar algum incômodo do público, as fugas de Rodrigo – primeiro de Dona Carmem e depois de uma colega que força pra se tornar sua namorada, Larissa são acompanhadas de uma evidente simpatia do público.

Aliás, o público desempenha um papel importante no espetáculo. Os atores interagem com eles muita vezes de forma direta, explicando atitudes uns dos outros e, até mesmo, deixando a cargo do público o desfecho do romance. Este é um ponto fundamental no sucesso do espetáculo, especialmente quando se leva em consideração que o público inicial do espetáculo era formado por estudantes de escolas públicas de Salvador. Levando o tema da diversidade sexual ao palco, colocando como protagonistas jovens gays, a equação da homofobia é revertida: de comportamento normal ou socialmente aceito, a homofobia passa a figurar como um problema sério. Tanto como preconceito que leva a agressão e sofrimento – a vítima foi o personagem Fabinho – como reveladora de questões subterrâneas: o espetáculo em alguma medida referenda a ideia de que a homofobia tem como causa um ódio irracional dos próprios desejos, corporificado na agressão daqueles que, ao viver, colocam em questão uma identidade arduamente construída. Este certamente é o segundo grande mérito do espetáculo. Sem deixar de lado o tom de comédia por meio da acentuação dos traços mais caricatos dos personagens não protagonistas (como Bruno, o homofóbico com ciúmes do relacionamento de Rodrigo e Fabinho, ou a mãe super-protetora de Fabinho, Margarete), a diversidade sexual se coloca em dialética com a homofobia, inclusive a que ocorre em vários níveis. Se o ponto alto deste tema no espetáculo é a agressão, a atuação da diretora do colégio e da orientadora coloca em evidência a dificuldade que as escolas têm ao lidar com a diversidade justamente nas figuras representativas de autoridade e aconselhamento. Sobretudo ganha contornos importantes a tentativa de ocultamento, sob a rubrica da “confusão dos desejos” acompanhada de uma imprescindível discrição, reveladas respectivamente pela diretora e pela orientadora.

Mas há mais com outro grande mérito do espetáculo. Os personagens dos pais de Fabinho e Rodrigo, a despeitoo de um grau excessivo de ingerência na vida dos rapazes, ganham o público pela aceitação dos filhos. Em verdade, a grande preocupação de Margarete é que o filho tenha uma namorada que dispute o seu lugar de única mulher da casa; já o pai de Rodrigo, mesmo com a tentativa de garantir que o filho perca a virgindade com a experiente Dona Carmem, coloca o amor paterno acima da orientação sexual do filho.

Com este binônio – a escola como espaço de normatização do corpo e das sexualidade, e a família como espaço de expectativas que cedem lugar a graus de aceitação – Entre Nós constrói habilmente o microcosmo onde jovens – ou não tão jovens – gays tiveram as primeiras descobertas e experiências da sexualidade.
Contando com a participação de Leonardo Bittecntourt, guitarrista que abre o espetáculo com a música Ouvidos ao mistérios, de Leonardo Cavalcanti, e realiza efeitos de som no palco ao longo do show para ressaltar momentos de tensão ou de romance, o espetáculo é um prato cheio para pessoas de todas as idades. Inteligente sem deixar de ser compreensível, permite que o espectador coloque em perspectiva pressupostos que parecem muito bem estabelecidas, mas que na realidade se fazem mais por senso comum e preconceito do que por funcionar como algo compartilhado por todos. Espetáculo sobre a diversidade, esta não é apresentada como algo externo, coisa de teoria de professor ou de escola: mas como algo do cotidiano, que precisa ser reconhecido e respeitado no outro – e em si mesmo.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 5 de março de 2014

Longe do Paraíso (2002)

A descoberta e ocultação da homossexualidade ainda hoje é motivo de dor, infelicidade e mentiras. Não raro, a performance da identidade sexual dentro de uma perspectiva de heterossexualidade compulsória é problema com os quais indivíduos homossexuais precisam lidar cotidianamente. A tensão entre desejo e afetividade em contraste com expectativas sociais em torno do desempenho esperado e exigido de certo lugar social constitui um dos grandes dilemas do processo de descoberta, e de suas derivações.

Há uma vasta produção cinematográfica em torno dos sofrimentos dos homossexuais com as expectativas tensionados até um extremo com os desejos. Desde Um homem chamado flor de outono, até os Rapazes da banda, dezenas de filmes passearam pela amargura, desejo, amor, descoberta, saída do armário, etc. Contudo, muitos poucos falam das experiências daqueles que, uma vez tocados pela homossexualidade de uma pessoa próxima, precisam reconfigurar seu universo de referências de mundo e de relações. Uma excelente produção sobre o tema, sem sombra de dúvida, é Longe do paraíso, filme Todd Haynes, com uma magistral atuação de Julianne Moore, que lhe valeu uma indicação ao Óscar.
O enredo do filme é simples: Vivendo confortavelmente no surbúbio de Hathford, Connecticut, Catheleen (J. Moore) e Frank Whittaker são um típico casal de classe alta do final dos anos 1950 nos Estados Unidos: brancos, prósperos, com um casal de filhos, numa casa grande com jardim, uma empregada negra e um jardineiro – também negro. Executivo de uma empresa de televisores, Frank com sua bela esposa e impecável casamento é o principal garoto propaganda da marca. Em suma: para a educada, gentil e bela Kathy Whittaker, uma vida cor-de-rosa.

O mundo de Kathy começa a se despedaçar quando ela descobre que Frank, depois das longas horas-extras no escritório, tem encontros sexuais com outros homens. Chocada, Kathy exige que Frank se trate com um médico, o que gera um período de estabilidade e brigas entre ambos, culminando em agressão física. Neste meio tempo, Kathy desenvolve uma relação de proximidade e atração com o cavalheiro, belo e culto jardineiro, Raymond Deagan (Dennis Haysbert). Bom pai, trabalhador dedicado, elegante e gentil, ele encarna em certa medida os pontos que Frank lentamente deixa de ocupar na vida de Kathy.

Mas a relação quase que espiritual de Raymond e Kathy é motivo de grandes comoções na cidade. Por uma razão muito simples: Raymond é negro, e qualquer associação entre uma mulher branca e um homem negro aparece sob o signo da suspeita. Lentamente, Kathy deixa de ser a Mrs. Magnatech, garota-propaganda da marca, para se tornar uma personagem suspeita de adultério e de associação com movimentos pró-igualdade. A relação leva ao afastamento entre ambos, com consequências dolorosas: a filha de Raymond é apedrejada, assim como a casa do ex-jardineiro torna-se alvo de pedradas. Sem suportar o ódio da comunidade, ele termina migrando para o sul – quase ao mesmo tempo no qual Frank descobre o amor por um jovem rapaz, e decide se divorciar de Kathy para viver a paixão com outro homem.

Sem soluções fáceis nem pré-julgamentos, e longe de uma visão heróica sobre relações afetivas interraciais ou homossexuais, o filme tem o mérito de apresentar ao leitor uma reflexão inquietante: num mundo onde todos são vigiados cotidianamente, em vários níveis de sua experiência íntima, qual o limite possível para se falar de privacidade? E mais: o quando atos sexuais e\ou afetivos que fogem a uma norma tem mais envolvidos do que pode parecer a primeira vista.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 25 de fevereiro de 2014

Borboletas da vida (2007)

Complexificando a experiência homoerótica

 

Borboletas da vida é um filme diferente dos que costumam ser exibidos e discutidos no Tardes de Cinema. Em primeiro lugar, pelas dimensões – é pouco mais do que um curta metragem, do alto dos seus 38 minutos. Mas o tempo relativamente curto em relação a outros filmes e documentários não se traduz em falta de qualidade. Antes pelo contrário. Borboletas da vida é uma cartografia da experiência homoerótica no Rio de Janeiro, mas a partir da perspectiva da periferia – e não do centro geográfico e cultural dos calçadões de copacabana ou dos arcos da lapa. Mais precisamente, enfoca o microcosmo da baixada fluminense, sobretudo de Austin e Nova Iguaçu.

O foco do filme são as narrativas das experiências de vida de diferentes sujeitos a partir de suas vivências do homoerótismo. Também tem um tom de denúncia, no qual as astúcias e estratégias de sobrevivência ganham um tom heróico de subversão do sistema e de contestação da violência pelas bichas-boy, identidade ostentada pelas personagens do documentário. Assim, a metáfora de Borboletas da vida, talvez conduzida algumas vezes de forma equivocada, serve para pensar as trajetórias em dois vetores principais: primeiro, como transformação de um estado de larva a borboleta, da prisão ao chão (social) para a liberdade de alçar vôo, expressada na adoção de gestos, estética e jeito de corpo que fogem ao normal; em segundo lugar, metáfora da sobrevivência, pois a beleza da borboleta também funcionou como camuflagem para evitar predadores – o que expressou a negociação da vivência homoerótica em função do contexto social de intolerância e violência, mas que não impediu totalmente esta experiêcia.

Trazendo histórias de vida distintas, mas com um corte social relativamente aproximado – são pessoas de menor renda e escolaridade – o filme apresentou um interessante discurso em torno da identidade das bichas-boy. Sem se indentificaram como travestis, e muito menos como trangêneros – mas com elementos partilhados com ambas identidades -as bichas-boys vivem uma situação de ambivalência da qual sabem habilmente tirar partido. Reconhecendo que, ao assumir uma performance de gênero diferente da expectativa dada pelo sexo anatômico existem riscos de vida, de subsistência ou de sobrevivência,as bicha-boys fervem ou fazem shows levando na mala suas individualidades subterrâneas e deixando-as sair quando possível. Indício da resistência em condições difíceis, o documentários traduz habilmente o quando o subordinado pode, muitas vezes, negociar os termos de sua própria subordinação. Sem deixarem de viver uma identidade irreverente e resistente as normas, as bicha-boys demonstram o quanto a sociedade e as vivências do homoerotismo podem e deverm ser complexadas além de caixinhas como “travesti”, “gay”, “hetero”, etc.

Isto não significa, contudo, propor uma nova caixinha para estes sujeitos. Ao contrário. Embora existem elementos comuns apresentados no filme pelas bichas-boys, como por exemplo não optar por cirurgias de mudança corporal (“botar peitinho ou bunda”), ou levar a “bicha na mochila”, existem graus diferentes e formas diferentes de viver suas especificidades. Desde aqueles que são bichas-boys apenas nos espetáculos que realizam, se aproximando mais do imaginários das drag-queens, passando pelos que tem um jeito de corpo dentro de casa ou quando em grupo, os que vivem esta identidade de forma mais contínua. Por trás de tudo, entretanto, desponta uma espécie de “rede de sociabilidade” que mesmo com tensões geracionais (velha-guarda versus novas) proporcionaram um quadro de referência e, em muitos casos, de apoio para as bicha-boys. Num cenário de violência constante, o papel e a necessidade destes grupos de apoio mútuo é fundamental. Pleiteando, muitas vezes, a falta de um centro de assistência social (jurídica, psicológica, e de convivência) direcionados a homossexuais, travestis e bichas-boy, não deixam de ocupar espaços próprios. Um deles foi a casa noturna o site club, na qual as bicha-boys se vestem, maquiam e fervem a noite na pista e no palco.

Embora promovido pela ABIA – Associação brasileira interdisciplinar da AIDS, fundada por Betinho – a temática da AIDS apareceu de forma muito breve no filme, sobretudo no final quando o dono do site Club, Julio, demonstra preocupação em conscientizar os frequentadores quanto aos perigos da doença. Outro grande mérito do documentário foi não patologizar ou apoiar a ficção vivência homoerótica -> doença. Ou invés disto, denuncia frontalmente a ausência do poder público e as estratégias de sobrevivência das bichas-boys.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 5 de fevereiro de 2014 às 19:46

Um homem chamado flor de outono (1978)

O mundo dos maricóns, anarquistas e boêmios na Barcelona dos anos 1920.

Neste drama de Pedro Olea, ambientado na Barcelona dos anos 1920, homossexualidade, segredos e resistência se entrelaçam, num enredo fascinante. Lluis de Serracant (José Sacristán), filho de uma das famílias mais nobres da cidade, durante o dia atua como advogado engajado na defesa de operários presos pelo regime ditatorial de Miguel Primo de Rivera. A noite, entretanto, ele trabalha no cabaré Bataclan, sob a alcunha de Flor de Outono, cantora mais popular do local. O filme gira em torno do mistério da morte de uma outra travesti, a Coquinera (Antonio Corencia). As duas brigam durante o show de Flor de Outono, e quando a outra aparece morta na manhã seguinte, Flor de Outono é a principal suspeita da polícia e do perigoso noivo da Coquinera, Armengol (Roberto Carmadiel). Flor de Outono precisa, então, manobrar cuidadosamente sua vingança contra Armegol, sua atuação como principal articulador de um plano para eliminar Primo de Rivera, e a revelação de sua sexualidade para a mãe.

Flor de Outono foge bastante ao esteriótipo, comum em filmes dos anos 1970 e 80, que mostram a homossexualidade descolada de outros debates políticos da sociedade, ou mesmo sob uma ótica positiva. Embora com contornos de uma experiência trágica, a amargura presente em filmes como Os Rapazes da Banda (1970) não está presente na narrativa. O destino de Flor de Outono não parece predeterminado ou infeliz por natureza, mas sim sujeito a mudanças vindas de lutas políticas. Por outro a lado, o enredo não esconde as cenas de intimidade e carinho, tanto de Flor de Outono com seu namorado, Ricard (Carlos Piñero) como entre a Coquinera e Armengol. Considerando as condições do cinema nos anos 1970, e o impacto que filmes posteriores que mostraram cenas com o mesmo conteúdo, a exemplo de O segredo de Brokeback Mountain (2005), Alexandre (2004), o filme coloca a questão com muita naturalidade – especialmente quando comparados com filmes como Para Wong Foo, obrigado por tudo (1995), onde os personagens são colocados na categoria de anjos sem sexo.

O filme rapidamente coloca em questão a relação entre sexualidades divergentes e a boêmia, também detectada em outros trabalhos ambientados na mesma época na Espanha, a exemplo de Poucas Cinzas (2009). Neste caso, porém, a homossexualidade e o travestinidade é inscrita com mais força no seu contexto social subterrâneo, que relaciona profundamente sujeitos marginais. Maricões, anarquistas, operários pobres, prostitutas, . Sem tratar de personagens mundialmente famosos como Lorca e Dalí, proporciona um entedimento mais denso do submundo gay da época, e da sua relação, inclusive, com a política. Sem dúvida, um dos filmes mais interessantes do gênero.
Um adendo: o filme tem a participação de ninguém menos que Pedro Almodóvar, como Flor de Nicarágua, rainha da banana, uma das travestis que fazem show no Bataclán.²


¹ Bataclan também é o nome de uma famoso Cabaré na cidade de Ilhéus, Bahia, famosos nos anos 1920 e popularizado pelas obras de Jorge Amado, como Gabriela, Cravo e Canela. O Bataclan ilheense e sua congênere em Barcelona fazem referência a um famoso café-concerto parisiense, construído em 1864.

² Ver em  All About Amodóvar: A Passion for Cinema

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 23 de janeiro de 2014

Uma introdução às histórias da homossexualidade

Eu vi um jovem gracioso na mesquita
Lindo como a lua quando ela aparece
Aqueles que o vêem curvando-se para orar dizem:
“Todos os meus desejos são para que ele se prostre ainda mais”.
(TORRÃO FILHO, 2000, p. 100)

 

TORRÃO FILHO, Amílcar Torrão. Tríbades galantes, fanchonos militantes. Homossexuais que fizeram história. São Paulo: Edições GLS, 2000. 294 p.

Uma das obras de divulgação mais interessantes sobre a temática LGBTT ao longo da história. Creio que esta é a melhor definição para este interessante trabalho de Amílcar Torrão Filho. Obra de síntese, não deixa de dar conta de alguns períodos que despertam mais interesse de curiosos sobre o tema, como o mundo greco-romano, ou a época e atuação das inquisições. Isto sem descuidar, em muitos momentos, de detalhes que são desconhecidos da maioria dos leitores brasileiros sobre o tema, como a primeira vaga do movimento de direitos civil LGBTT sob Magnus Hirschfeld, ou a tolerância do homoerotismo pelo islã no al-Andalus.

Os capítulos acompanham aquilo que se convencionou chamar de “grande narrativa” da história ocidental, indo da Babilônia a Grécia antiga, e centrando posteriormente sua análise, sobretudo, no mundo europeu e colonial. Acompanhando hora a vida de homossexuais que fizeram história, ou de personagens que tiveram alguma relação – como legisladores, médicos, políticos, etc. – Torrão Filho apresenta o tema com um texto leve e bem escrito, mas rigoroso e bem informado dentro das possibilidades de pesquisa do autor.

Os primeiros quatro capítulos quatro capítulos da obra focam a antiguidade, a idade média, o renascimento e a idade moderna. Este constitui, para fins desta análise, o “primeiro bloco do trabalho”, que é o mais interessante, por conter informações que podem ser surpreendentes para pessoas que estão fora da academia ou dos gay and lesbian studies. Assim, no capítulo sobre o medievo, descobrimos que o Al Andalus tinha não apenas uma produção de poesia homoerótica extremamente vasta e bastante explícita, como igualmente um grau de tolerância muito grande para com relações homoeróticas. Este lado pouco conhecido da história do islamismo ajuda a desconstruir um pouco a noção de que a homofobia e homossexualidade são invariantes culturais, ou que toda religião monoteísta é homofóbica: a relação destas com o homoerotismo variou muito ao longo do tempo e do espaço, como o autor procurou demonstrar.

Os capítulos do segundo bloco, que tratam do mundo contemporâneo, se filiam mais diretamente a proposta do autor de centrar a análise nos homossexuais que fizeram história, de Byron a Lorca, passando por Oscar Wilde, e sem esquecer os horrores do triângulo Rosa nazista, o autor faz uma análise que se tem uma falha é a brevidade. Obra de síntese, capítulos maiores seriam um fator desmotivador para um público mais amplo de leitores.

Os pontos de maior interesse desta segunda parte são o capítulo sobre o século XIX, no qual o autor lembra da importância de autores como Ulrichs ou Karól Maria Benkert, com os quais aparecem, respectivamente, os termos uranista e homossexual; e Magnus Hirschfeld, talvez o mais importante representante da primeira vaga dos direitos civis dos homossexuais (LAURITSEN & THORSTAD, 1874, p. 9-17) – embora Torrão Filho destaque muito mais a famosa petição para descriminalização da homossexualidade do Código Criminal do Reich.

O terceiro bloco trata, num único capítulo, do que se poderia chamar de história da homossexualidade no Brasil. Um balanço bastante equilibrado, seu autor aqui comete alguns pequenos deslizes. Primeiro, fica pouco claro se a atuação da inquisição em terras brasileiras era limitada a visitação, ou se havia algum tipo de estrutura montada para o trabalho do Santo Ofício – como de fato o era, sobretudo nos séculos XVII e XVIII, com os comissários e familiares do Santo Ofício (MOTT, 2010, p. 43-62). O maior problema, porém, é o XIX: o século que viu o surgimento dos termos “homossexualidade” e “homossexualismo” não apenas na Europa como no Brasil, por meio das teses das faculdades de medicina (TREVISAN, 2011m 171-185) merecia maiores detalhes.

O último bloco, também com um único capítulo sobre a relação entre homossexualidade e cristianismo. Um dos pontos altos da obra, senão pela análise das obras, por desmontar alguns dos argumentos que sustentariam a homofobia das igrejas cristãs. Citando a obra de teologia do padre Helminiak, com seu famoso O que a bíblia realmente diz sobre a homossexualidade, o autor faz o precioso trabalho de mostrar como uma leitura supostamente literal – mas, na prática, seletiva e descontextualizada – embasa os argumentos em torno do pecado de Sodoma, e da homossexualidade como uma abominação. Por fim, cita a obra Same sex unions in premodern Europe, da autoria de John Boswell.  Sem negar a polêmica, o autor mostra como Boswell defendeu, com base em documentos de uniões entre homens, que a Igreja católica havia apoiado uniões entre pessoas do mesmo sexo em seus primórdios. Num contexto brasileiro como o atual, onde a bancada religiosa cresce com base num discurso homofóbico, este capítulo desmonta a própria argumentação dos detratores de direitos LGBTT.

Referências:

MOTT, Luiz. Bahia: Inquisição & Sociedade. Salvador: EDUFBA, 2010. 293 p.

LAURITSEN, John; THORSTAD, David. The early homossexual rights movement (1864-1935). NY: Times Change press, 1974. 94 p.

TREVISAN, João Silvério. Devassos nos paraíso. A homossexualidade no Brasil, da colônia a atualidade. 6ª Edição. Rio de Janeiro: Record, 2011. 586 p.

 

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 8 de janeiro de 2014

 

 

Pecado da Carne (2009)

Pecado da carne, filme de 2009 dirigido por Haim Tabakman é um filme dotado de atmosfera. De fato, o longa transporta o telespectador para as sufocantes ruas do Meah Shearim, o bairro ultra-ortodoxo de Jerusalém, onde uma história de amor entre dois homens termina florescendo com consequências severas.

O longa gira em torno de Aaron Fleischman (Zohar Shtrauss), um dos mais respeitáveis membros da comunidade. Estudioso dos textos sagrados, pai e marido devotado, Aaron também trabalha como açougueiro da comunidade – função importante especialmente num subgrupo judaico que leva as estritas regras dietéticas a extremos. Responsável por uma função tão importante, o protagonista é obrigado a colocar um aviso de busca de um ajudante, já que o volume de trabalho é muito grande. Neste ponto do filme, somos apresentado ao jovem, belo e misterioso Erzi (Ran Danker), que foi aparentemente abandonado por um amigo. Sem lugar para ficar, ele pede emprego a Aaron, que consente em admitir o jovem sem experiência na função.

O filme em seguida apresenta a lenta aproximação física e afetiva dos dois homens, mostrando a tensão sexual entre Aaron e Erzi. Se o desejo por outros homens é rapidamente mostrado por Erzi, que busca reatar a amizade com um rapaz com o qual se envolvera pouco antes, Aaron é a outra face. Não apenas mais contido – se bem que mostrando um desejo sublimado pelo assistente – como também ligado a um discurso religioso que evoca a resistência ao desejo por outros homens.

Rapidamente, entretanto, a relação com Erzi se torna uma alternativa de vida para Aaron: não apenas um assistente ou um amante, mas uma possibilidade de escapar de um cotidiano difícil em em grande parte pouco satisfatório. Seja como pai, religioso ou marido, a frágil arquitetura de vida de Aaron não resiste ao desejo representado pelo assistente.

Neste trecho fica patente um dos elementos mais interessantes do filme: a sensação do sufocamento se traduz numa vigilância da comunidade enquanto instituição das condutas – inclusive sexuais – de seus membros. O romance entre ambos começa a se tornar de conhecimento público, despertando a ira dos vizinhos por duas razões: tanto a relação entre os dois entra no rol do que era considerado uma abominação, como implica no rompimento da confiança como guardião da pureza da comunidade na forma do seu papel como açougueiro. Assim, a mobilização contra os dois é bem mais poderosa do que um caso temporalmente análogo de sexo antes do casamento.
Sem soluções fáceis, o grande mérito de Pecado da Carne é pensar como as vivências do homoerotismo possuem soluções que em seu contexto podem ter consequências bastante graves. Neste sentido, não deixa de ser uma importante reflexão sobre tolerância e intolerância, imposições religiosas de ordem religiosa, bem como os graus de internalização e de concilialção que estas regras podem ter nos sujeitos que vivem sobre elas.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 07 de Janeiro de 2014