Bent (1997)

Ficha Técnica:
Direção: Sean Mathias
Escrito por: Martin Sherman
Estúdio: Channel four
Duração: 104 minutos.

Sinopse: Max (Clive Owen) é um jovem e bonito, frequentador da noite gay da Berlim dos anos 1930 e namorado de Rudy (Brian Webber II) dançarino no lugar. Uma noite, ele se envolve com um membro das S.A., as tropas de assalto nazistas. Infelizmente, naquela noite Ernst Röhm, líder das S.A. e seus aliados foram eliminados sob os auspícios de Adolf Hitler. Max decide fugir junto com Rudy, mas termina capturado e levado ao campo de concentração de Dachau. Um vez ali, Max decide carregar a estrela amarela dos judeus em lugar do triângulo rosa que Horst (Lothaire Bluteau) usa orgulhosamente. A questão posta para Max e Horst é: como sobreviver ao campo de concentração sem permitir que aquele lugar termine destruindo a humanidade de seus prisioneiros?

Porque ver esse filme: Filmado em 1997, foi um dos primeiros longa-metragens a registrar a perseguição nazista aos homossexuais. Apesar de pontual, mostra o papel da violência como uma ferramenta de terror de Estado pela S.S. e pela Gestapo. Além disso, o processo de enraizamento do nazismo e do horror na sociedade alemã da época pode ser observado a partir da apatia que os personagens mostram em relação as transformações políticas do período. O desenvolvimento do afeto pelos personagens, marcado pela proibição do toque entre os prisioneiros também representa algumas das cenas mais bonitas do filme.

Temas e questões: Um dos maiores méritos do filme é apresentar uma reflexão extrema sobre a acomodação que a tolerância pode gerar em sujeitos desviantes. Afinal de contas, tanto Max como Rudy parecem muito pouco interessados nas transformações da política alemã naquele momento, o que termina por ter consequências muito negativas para o futuro de ambos.

Comentário (Spoilers): Bent foi baseado na peça do mesmo nome, que estreou em West End no ano de 1979, com ninguém menos que sir Ian Mckellen como protagonista. Na época, gerou uma tremenda reação por ter colocado em debate a quase desconhecida perseguição dos homossexuais durante o regime nazista. Ela foi representada na Broadway em 1980, protagonizada por Richard Gere e David Dukes, respectivamente como Max e Rudy.

O começo do filme possui alguns problemas. A opção que o diretor adota para retratar a vivência homoerótica em Berlim nos anos 1930, marcada pela promiscuidade e decadência, é bem questionável. É certo que a homossexualidade se confundia com a boemia durante boa parte dos primeiros quarenta anos do século XX e filmes como Christopher and his kind mostram esse universo amalgamado que era a noite berlinense pré-nazismo. Igualmente, o período de maior brilho e aceitação social de ideias progressistas, inclusive sobre a homossexualidade nos anos 1920 cedem espaço para pessimismo e crise sócio-econômica nos anos 1930. Contudo, a apresentação da maioria dos homossexuais do começo do filme como alienados, fúteis e ou promíscuos é incômoda. Esta impressão começa a ser desfeita com a personagem de Horst, que salva a vida de Max no trem para Dachau e usa o triângulo rosa com orgulho. Ele revela, inclusive, que foi preso por ter assinado uma petição para a libertação de Magnus Hirschfeld, um dos pioneiros dos direitos dos homossexuais, ativista pelos direitos civis de gays, lésbicas e trans e fundador do Instituto para o Estudo da Sexualidade, centro de estudos que visava desfazer preconceitos sobre o assunto, por meio do incentivo de pesquisas, atividades educativas, consultas médicas, tratamento endocrinológico para transexuais, etc. Vale ressaltar que em 1919 foi produzido um filme sobre o assunto, profundamente crítico ao código 175 do Código Criminal do Reich, que punia relações sexuais entre homens.

A segunda parte do filme, que retrata a vida em um campo de concentração e o conjunto de atividades sem sentido que visavam destruir a humanidade dos sujeitos considerados perigosos e problemáticos para o IIIº Reich é certamente a mais interessante e emocionante. Max suborna um dos guardas para que Horst trabalhe com ele carregando e organizando pilhas e pedras em diferentes lugares do campo de concentração. Uma vez juntos, os personagens têm a oportunidade de descobrir o verdadeiro significado de afeto, amor e sacrifício, e transformam o cotidiano numa luta constante para não enlouquecer e sobreviver resguardando a capacidade humana de amar.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 22 de Maio de 2015

La partida (2013)

Ficha Técnica:
La partida (2013)
País: Cuba/Espanha
Direção: Antonio Hens
Roteiro: Abel Gonzaléz Melo, Antonio Hens
Duração: 94 minutos.

Sinopse:
Cuba, anos 2000. Pobreza e marginalização são o cotidiano dos jovens Yosvani (Milton García Alvarez) e Reinier (Reinier Díaz Vega). O primeiro é assistente do sogro, o contrabandista Silvano (Luis Aberto García). O segundo, desempregado, vive como garoto de programa para estrangeiros endinheirados, sustentando assim a esposa, a sogra e o filho. Os problemas começam quando a amizade entre os dois rapazes se torna cada vez mais séria, ultrapassando as fronteiras da admiração mútua e se convertendo em afeto e atração sexual. Pode o amor dos dois rapazes se fortalecer na misógina e homofóbica sociedade cubana?

Porque ver esse filme:
A vivência da homossexualidade no longa é bem próxima a realidade brasileira dos últimos quinze anos. Além disso, apresenta uma versão realista sobre a maneira como a homossexualidade ainda é objeto de questionamentos na sociedade cubana. Um bônus é a atuação de dois belíssimos atores cubanos do Teatro El Publico, famoso por desenvolver espetáculos contestatórios da moral cubana desde a sua fundação em 1992.

Temas e questões:
Um dos pontos de maior interesse do filme é a tensão entre homoerotismo e masculinidades que os dois personagens mostram. Além disto, a representação de sexualidades divergentes pela sociedade cubana, marcada pela herança colonial misoginia e homofobia em tensão com existência cada vez mais visível de sexualidades divergentes é extremamente significativa.

Comentário:
Da safra de filmes que discutem a homossexualidade em Cuba, iniciada com Morango e Chocolate (1993) e continuada pelo controvertido Antes do Anoitecer (2000), La partida é um dos mais férteis. Primeiro, pela discussão da sociedade cubana sem se preocupar em demonizar ou exaltar a revolução e seu posterior desenvolvimento. Segundo, por colocar no centro da questão os problemas relativos a tensão entre homoerotismo e masculinidade que as personagens, sobretudo Reinier, mostram. É possível ter relacionamentos com homens na sociedade cubana sem deixar de lado o lugar social de macho, mas apenas se for possível seguir certo número de regas: ter relações afetivas com mulheres; não se deixar ser penetrado; aceitar a relação sexual apenas pelo interesse financeiro; e não se deixar envolver além do aspecto monetário e sexual da relação. Em suma, uma espécie de gay por dinheiro, que os jovens que não chegam a universidade nem a carreiras socialmente valoradas podem seguir para manter um padrão de vida menos desconfortável. No caso de Reinier isso é mais claro porque as relações homoeróticas do jovem sustentam a família. Por outro lado, Yosvani é noivo de Gemma, filha do contrabandista Silvano, com acesso a uma vasa confortável e bens de consumo como tênis e roupas de marca. Mesmo assim, é com ele que o telespectador mais se identifica. É óbvio o desconforto da personagem com os negócios do sogro, e o seu apaixonamento por Reinier é o caminho para a destruição. Lançado para as ruas, sem outra saída que não se prostituir por dinheiro – numa das cenas mais fortes do filme – e roubar, Yosvani é a vítima por não se conformar com o lugar marginal que o amor entre dois homens possui na sociedade em que vive.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 5 de maio de 2015

Transexuais no Irã (Be Like Others, 2008)

Transexuais no Irã (Be Like Others, 2008)
Direção: Tanaz Eshaghian

Um dos países islâmicos que pune mais duramente a homossexualidade é o Irã. República confessional, onde a sharia foi codificada para tipificar condutas criminosas, punindo casais de pessoas do mesmo sexo com a morte, quer por enforcamento quer por apedrejamento. Neste contexto, um grande número de pessoas se surpreende com um dado: o Irã é um dos países que mais promove cirurgias de readequação sexual anualmente e, na verdade, o país possui uma política de mudança de sexo e de gênero inclusive nos documentos de identidade de pessoas que passaram pela cirurgia. Aparentemente esta é uma das legislações mais progressistas do mundo nesta questão.

O documentário Transexuais no Irã, filmado em 2007 e filmado por Tanaz Eshaghian se propõe a investigar esta prática, ouvindo os vários envolvidos no processo de mudança de sexo, médicos, familiares e amigos dos pacientes, e sobretudo pessoas que desejam passar pela cirurgia. Isto proporciona ao telespectador uma visão multifacetada do problema: se para os médicos, juristas e agentes públicos é uma prova que o Irã possui preocupações humanitárias de grande parte já que permite e incentiva o tratando da doença (sic) do transexualismo, para os pacientes e outros envolvidos com o outro lado a questão é bem outra. A cirurgia é a única possibilidade para muitos gays e  lésbicas de serem socialmente aceitos por suas famílias e amigos, e mesmo de sobreviver num Estado onde a polícia moral nunca está muito distante e pune duramente os desvios. Em verdade, o documentário dá a entender que a situação de pessoas que passarm pela cirurgia tampouco é confortável: nem todas as famílias aceitam estes “novos” homens e mulheres, sobretudo longe dos grandes centros como Teerã; agentes públicos continuam agindo com discriminação; e o lado mais perverso do esquema, impor a pessoas cisgêneras uma cirurgia arriscada, irreversível e com efeitos sociais e físicos extremamente complicados. Em última análise, a imposição de um modelo heterossexual e binário se apropriou da tecnologia para marginalizar ainda mais aqueles que são desviantes do ponto de vista da identidades de gênero ou da orientação sexual.

O documentário trabalha com dois transhomens como exemplos típicos da vida antes das cirurgias, do processo de readequação e do pós cirúrgico. Se Anusz recebeu apoio – mesmo relutante – da familia e do namorado para realizar todo o processo, Ali Askar quase foi morta pelo pai e foi totalmente excluída da família ao seguir em frente com o sonho de realizar a cirurgia. Apoiada apenas por um amigo chamado Farhadn que rapidamente denuncia o quanto pessoas LGBT são obrigadas a passar pelos riscos para não enfrentar o preconceito da sociedade e/ou a morte. Na memorável discussão com uma repórter da rádio estatal, ele lembra que a cirurgia é cara e não se traduz em qualidade de vida para quem a ela se submetem. A discussão entre Faradn e a repórter é chocante: para esta a questão parece se resumir a homens que se vestem de mulher e mulheres que se vestem de homem e que devem sofrer o preço por esta atitude, inclusive suportando violências e  marginalização. Em verdade, a fala demonstra o quanto a realidade trans, descrita de forma positiva pelos médicos e declarações do Estado, na prática é extremamente marginalizada.

O documentário pode chocar a princípio, mas permite refletir sobre a realidade de pessoas LGBT e sobretudo trans em outras parte do mundo, além de colocar em chequecertas concepções partilhadas tanto por médicos iranianos quanto brasileiros. A abordagem patologizante, que cria a necessidade da cirurgia como componente de (algum) reconhecimento e o preconceito social está presente tanto no Irã quanto no Brasil do começo do século XXI.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 25 de novembro de 2014

Praia do futuro: impressões.

Sábado de noite, e o programa escolhido foi assistir praia do futuro. Eu, meu namorado e um casal de amigos. Expectativas muito grandes depois de uma fala de Wagner Moura que o filme não era gay… Sessão mais para o fim da noite no UCI Barra, inaugurado a poucos meses. O publico era bem diverso. Gays, héteros, lésbicas, a maioria próxima dos trinta anos, mais ou menos.

Destaque para as reações do público ao filme. Num universo de cem pessoas ou pouco mais, pelo menos dez pessoas saíram durante a sessão. Um grupo delas protestando sobre o nojo que sentiam das cenas de sexo, considerando um absurdo aquele tipo de coisa nas telonas. Um homem mais velho chegou mesmo a se levantar exclamando em voz alta que aquilo era demais, durante uma das cenas entre Donato  (Wagner Moura) e Konrad (Clemens Schick). Saiu da sala, o que não deixa de ser uma lástima: na ânsia de afirmar sua masculinidade fora de toda a dúvida, me atrapalhou de ver o filme… Neste sentido, podemos pensar que Praia do Futuro tem o mérito de evidenciar os processos poucos visíveis, mas muito significativos,  pelos quais se arquitetam os modelos de ser homem, especialmente de uma masculinidade compulsivamente heterossexual, machista e homofóbica. O incômodo demonstrado pelo espectador que se lastima do excesso que o filme demonstra vem da necessidade de se afirmar enquanto homem por via de uma tripla negação: não ser mulher, não ser criança, e não ser homossexual (BADINTER, 1993, p. 34). Necessidade compulsiva toda vez que um afago é substituído por um soco. Obsessiva, pois necessita de uma vigilância permanente de cada abraço ou aperto de mão, cada toque ou olhar. Imperativa, pois o menor sinal de desvio deve ser aniquilado. Eis um componente do modelo de masculinidade que serve de base para o comportamento do homem que se levantou, indignado, oprimido pelo imperativo de reafirmar sua masculinidade heterossexual diante de todos os outros presentes no cinema, performance que a muitos ainda parece indispensável e sinônimo de segurança e de costura das subjetividades internas que garantiria a boa ordem do mundo (HALL, 2012, p.p. 12-18).

Contudo, segurança frágil porque ilusória, como o rapaz provavelmente percebeu – mesmo que não tenha confessado isto senão ao seu travesseiro. Outras formas de masculinidade, ou seja, daquilo que constitui, que é próprio do masculino, estão em emergência. O gênero não é atemporal, mas criado socialmente na relação entre homens e mulheres em cada tempo e lugar determinados. A segurança aparente que a afirmação da masculinidade do indignado abre espaço para mostrar que existem outras possibilidades que subvertem hierarquias e borram a oposição entre pólos que parecem definitivamente afastados e estanques (SCOTT, 1995, p. 86). Não foi qualquer cena de beijo que deixou nosso pobre (de espírito) homem inconformado, foi a cena de sexo entre dois homens, e mais: a cena que pressupunha que um dos dois rapazes profundamente masculinos, barbados, atléticos seria passivo. Foi no exato momento que o ator do capitão nascimento, personagem com a macheza acima de qualquer duvida, deixou que outro homem tocasse sua bunda, evidenciando desejos e preferências sexuais. Mais do que o telespectador podia suportar imaginar, quem dirá ver! Imbróglio tão sério que gerou explicações apressadas e no minimo curiosas de um gerente do Cinépolis, diante da necessidade de avisar explicitamente e carimbar nas entradas que se tratava de um filme com cenas de sexo entre dois homens, fato que precisava ser deixado claro para evitar… o que? Reclamações futuras? Desespero de ver o descentrar e estilhaçar de valores que parecem socialmente muito naturais?

Colocando o dedo na ferida, Karim Aïnouz produziu um filme que merece dois qualificativos poderosos. O primeiro a de filme subversivo, porque questiona e desloca questões que parecem naturalmente corretas na sociedade, tirando os telespectadores (héteros, homos, gays, lésbicas) da zona de conforto: as cenas de sexo mostram afeto, carinho, desejo e tesão. Não são as cenas assépticas do cinema de enlatados norte-americanos, nem sequer as cenas de sexo de cueca que a rede Globo exibe: são cenas de transa, onde os corpos transpiram de desejo com gemidos, dor e prazer.  O segundo qualificativo, a meu ver e para desespero de Wagner Moura é que se trata, sim, de um filme gay. Não apenas uma tônica gay, mas problematizando e complexificando as questões em torno de homens gays: a descoberta associada a necessidade de viver experiências de relacionamentos com outros homens longe de casa, problemas associados a conflitos entre lugares sociais prescritos e desejos pessoais, sem falar no próprio imbróglio das posições sexuais mais ou menos masculinas, para desespero dos g0ys – questão subjacente no ocidente desde ao menos a época da Inquisição. Um filme que poderia ser descrito como sobretudo gay, indicando questões que são objeto de debate e de ansiedade para muitos jovens que, descobrindo os prazeres homoeróticos se deparam com os limites e as possibilidades da sexuais, amorosas, identitárias.

O filme não é perfeito. Apesar de lançar generosamente uma miríade de questões para debate, não se prende a nenhuma delas. Se o fio condutor é a experiência e as relações afetivas e familiares de  Donato, contrapostas primeiro como lugares prescritos e desejos proibidos, e depois da fuga de responsabilidades que retornam para cobrar a fatura, Aïnouz se preocupa mais com o panorama do que com as derivações dele. O telespectador está autorizado a sair do cinema com uma opinião aberta ou fechada sobre a experiência gay de Donato, do seu sucesso ou fracasso, dos seus problemas escolhas, cicatrizes e cruzes.

O filme possui, entretanto, uma mensagem que pode ser descrita como otimista. Ao perguntar ao irmão de dez ou onze anos o que ocorreria se sumisse no mar, o garoto responde que iria salvar Donato, mesmo detestando a agua. De uma forma inesperada é o que termina acontecendo quando Ayrton (um ótimo Jesuíta Barbosa) vai a Alemanha em busca do seu herói do passado, que por sete anos não havia tido qualquer contato com a família. Decidido a achar Donato, aprendeu alemão e não se deteve até obter a resposta de uma questão mal resolvida entre eles: como conciliar seu herói, o modelo de homem na infância com o  homem que foi encontrar na Alemanha sete anos depois.

Referências:
BADINTER, Elizabeth. XY: sobre a identidade masculina. Tradução Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise Histórica. disponível em: http://pt.scribd.com/doc/89392865/Joan-Scott-Genero-uma-categoria-util-de-analise-historica . Acesso dia 19 de mai de 2014.

WAGNER Moura sobre praia do futuro. In: http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/cinema/2014-05-06/wagner-moura-sobre-praia-do-futuro-e-mais-do-que-o-filme-do-cara-gay.html . Acesso dia 19 de mai de 2014.

CINEMA alerta cliente sobre cenas de sexo em “Praia do Futuro” e provoca polêmica nas redes sociais.In:http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/cinema-alerta-cliente-sobre-cenas-de-sexo-em-praia-do-futuro-e-provoca-polemica-nas-redes-sociais/ . Acesso dia 21 de mai de 2014.

Originalmente publicado no Nùcleo UniSex, em 21 de maio de 2014

O primeiro que disse (Mine Vaganti, 2010)

Nesta interessante comédia, dirigida por um inspirado Ferzan Özpetek, encontramos uma situação diferente da usual saída do armário: quando Tommaso (Riccardo Scamarcio) retorna a sua cidade natal decidido a dizer à família que é gay e deseja ser escritor. Ali, procura o apoio do firme irmão mais velho, Antonio (Alessandro Preciosi), espécie de diretor geral da companhia de alimentos que a tradicional família Cantone administra há décadas. No jantar formal, em que um novo sócio ingressaria na direção da empresa, somos surpreendidos com uma confissão de Antonio: que era gay, tinha um relacionamento com um ex-empregado e que desejava apoio dos pais. Vicenzo (Ennio Fantaschini) termina sofrendo um infarto depois de uma violenta discussão com o filho, e implora a Tommaso que fique e assuma o lugar de Antonio na empresa. No armário afetivo e profissional, o mais novo dos Cantone termina sendo obrigado a viver exatamente da forma como não queria: submetido as expectativas dos país, longe do namorado, Marco (Carmine Recano) e pressionado de todos os lados para dirigir a fábrica.

Por algum tempo, acompanhamos o esforço de Tommaso em tentar dar conta do problema, sem dar (muita) pinta. Nisto é ajudado pela irmã, Elena (Bianca Nappi) a quem associou a direção da empresa, e pela avó (Ilaria Ochinni), a doce e sarcástica fundadora da empresa exasperada com a inabilidade de Vicenzo em lidar com um filho homossexual, com o autoritarismo da nora, Steffania (Lunetta Savino), e o alheamento da filha, Luciana (Elena Sofia Ricci).

Embora aparentemente patriarcal e centrada na vontade de Vicenzo, a família Cantone tem arranjos subterrâneos muito interessantes, que demonstram que modelos de comportamento e de conduta são muito mais aparentes do que compulsórios, numa espécie de soft-power. Doloroso, certamente, mas com possibilidades de readequamentos e de negociação. O próprio Tommaso é um exemplo disto: sem desejar o lugar do irmão e a carreira de administrador, o jovem vive em Roma com relativa liberdade para se relacionar com outros homens e cursar Letras, em lugar de Administração, sem que família saiba. Da mesma forma, a avó foi apaixonada na juventude por Nicola, o irmão de seu marido e avó dos rapazes. Este romance impossível não impediu que a familia florescesse e a fabrica se tornasse maior e mais rica – mesmo que o contato de ambos se restringisse ao toque de mãos durante o preparo da massa.

O filme facilmente encanta o telespectador. Não apenas pela comédia de algumas cenas, mas pela profunda humanidade dos personagens, mesmo quando demoram um pouco a demonstrá-la. Este é o caso de Luciana ou de Elena: mulheres desconfortáveis em seus papéis, limitadas por espectativas de pais e irmãos, terminam criando maneiras criativas de sair de uma posição subalterna, ou, ao menos, de negociar os termos de sua subalternidade.

Sem apontar para soluções fáceis, também é um filme que fala de sacrifícios – não apenas em prol da família ou da fábrica, mas até mesmo em prol daquilo que se deseja obter. O preço a ser pago muitas vezes é alto – Tommaso revela, no final do longa, que não deseja administrar a fábrica, que prefere ser escritor, muito embora silencie sobre o armário. Mas quase sempre vale a pena, mesmo quando vive nas lembranças de um passado mais dourado: seja para a nonna e seu amado Nicola, seja para Luciana e a fase da juventude passada em Londres ao lado do namorado cantor de rock, seja no caso de Antonio na eterna busca do amado Michele, a quem despediu por medo da descoberta. Ou na aceitação da carreira escolhida por Tommaso, elemento que parece sugerido nas últimas cenas do filme.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 17 de abril de 2014

Orações para Bobby

Morte e redenção em Orações para Bobby *

Dentro da comunidade gay, poucos filmes devem gozar da mesma importância de Orações para Bobby, longa-metragem para tv dirigido por Russel Mulchay. Produzido para tv em 2009, trata-se de um dos filmes mais comentados da comunidade gay, praticamente constando como uma unanimidade no quesito importância e relevância da produção. Em tempos de fundamentalismo religioso militante e raivoso, agressivo, constitui um hino contra a intolerância do fundamentalismo cristão.

O filme se baseia na experiência real de Bobby (Ryan Kelley) e sua mãe, Mary Griffith (uma inspirada Sigourney Weaver), mãe de família profundamente cristã, a partir da descoberta da homossexualidade de seu filho mais novo, Bobby Griffith. Com enorme dificuldade em lidar com a descoberta do filho, a única saída possível para Mary aparece na forma de um tratamento psicológico aliada a uma estratégia de busca de conforto religioso que permitiriam a Bobby superar sua “doença”. Progressivamente, o jovem entra numa espiral de tristeza profunda, alimentada por uma dolorosa aceitação da própria homossexualidade acompanhada por enormes conflitos com a mãe, até o ponto do rompimento: decidido a viver sua sexualidade e o amor pelo namorado em outra cidade, Bobby termina rompendo com a família e indo morar em Portland. Uma vez lá, a distância marca muito mais o desenraizamento de Bobby – alheado, por um lado, do núcleo familiar, e, por outro, do namorado que o traiu – do que a liberdade que o rapaz aspirava. Entendendo que não tinha opções, Bobby termina retirando a própria vida, numa bela cena, que passa com maestria a confusão e desamparo do personagem.

A morte de Bobby marca a clivagem central do filme, e divide muito claramente os dois momentos que a personagem de Mary vive. Se o primeiro é marcado pelo endurecimento de sua visão de mundo, passando a normatizar e controlar não só as amizades, mas, até mesmo, o jeito de corpo do jovem Bobby, o segundo momento do filme acompanha o processo de redenção de Mary; não apenas pela aceitação da homossexualidade do filho e revisão e mudança de seus atos anteriores, mas, igualmente, por uma tomada de posição a respeito disto: se antes a preocupação de Mary estava nas implicações terrenas|sociais e além-vida da homossexualidade do filho, agora a morte e a descoberta das dores e sofrimentos de Bobby terminam por marcar uma completa reconfiguração de mundo para Mary. De fundamentalista cristã, empenhada na leitura literal dos versículos que supostamente condenam a homossexualidade, Mary se converte em uma militante pró-direitos LGBTT, profundamente preocupada com o efeito dos discursos homofóbicos, sobretudo os de orientação cristã fundamentalista sobre jovens homossexuais. A redenção de Mary é o tema desta segunda parte, e a militância termina por funcionar como catalizador do processo de perdão e da possibilidade de seguir em frente, reconciliando o passado e tentando um futuro melhor.

Com atuações boas e cenas comoventes, é o tipo de filme-bomba que poderia ser exibido a pais religiosos de jovens gays, pouco atentos as consequências funestas do seu preconceito. Rapidamente o telespectador cria empatia com Bobby, o tipo de rapaz perfeito, assim como passa a ter compaixão por Mary, com o adicional de colocar em xeque dogmas religiosos não por meio de oposições a doutrina as igrejas cristãs, mas por ministros religiosos que propõem outras interpretações da Bíblia. Neste verdadeiro “caminho do meio” o filme coloca na agenda da mensagem cristã o respeito e aceitação de outras formas de amor, constituindo uma plataforma poderosa para abalar certezas de religiosos convictos.

Mesmo com os problemas de um filme para a tv, como por exemplo um excesso de didatismo na primeira parte, e uma tendência a “correr” com processos de descoberta e aceitação dos personagens, não deixa de ser um dos filmes mais interessantes do gênero.

* O filme é baseado no livro de Leroy Aarons, Prayers for Bobby: A Mother’s Coming to Terms with the Suicide of Her Gay Son, editado em 1995, contando a história de Mary, e conta com excertos do diário de Bobby

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 1 de abril de 2014

Um homem chamado flor de outono (1978)

O mundo dos maricóns, anarquistas e boêmios na Barcelona dos anos 1920.

Neste drama de Pedro Olea, ambientado na Barcelona dos anos 1920, homossexualidade, segredos e resistência se entrelaçam, num enredo fascinante. Lluis de Serracant (José Sacristán), filho de uma das famílias mais nobres da cidade, durante o dia atua como advogado engajado na defesa de operários presos pelo regime ditatorial de Miguel Primo de Rivera. A noite, entretanto, ele trabalha no cabaré Bataclan, sob a alcunha de Flor de Outono, cantora mais popular do local. O filme gira em torno do mistério da morte de uma outra travesti, a Coquinera (Antonio Corencia). As duas brigam durante o show de Flor de Outono, e quando a outra aparece morta na manhã seguinte, Flor de Outono é a principal suspeita da polícia e do perigoso noivo da Coquinera, Armengol (Roberto Carmadiel). Flor de Outono precisa, então, manobrar cuidadosamente sua vingança contra Armegol, sua atuação como principal articulador de um plano para eliminar Primo de Rivera, e a revelação de sua sexualidade para a mãe.

Flor de Outono foge bastante ao esteriótipo, comum em filmes dos anos 1970 e 80, que mostram a homossexualidade descolada de outros debates políticos da sociedade, ou mesmo sob uma ótica positiva. Embora com contornos de uma experiência trágica, a amargura presente em filmes como Os Rapazes da Banda (1970) não está presente na narrativa. O destino de Flor de Outono não parece predeterminado ou infeliz por natureza, mas sim sujeito a mudanças vindas de lutas políticas. Por outro a lado, o enredo não esconde as cenas de intimidade e carinho, tanto de Flor de Outono com seu namorado, Ricard (Carlos Piñero) como entre a Coquinera e Armengol. Considerando as condições do cinema nos anos 1970, e o impacto que filmes posteriores que mostraram cenas com o mesmo conteúdo, a exemplo de O segredo de Brokeback Mountain (2005), Alexandre (2004), o filme coloca a questão com muita naturalidade – especialmente quando comparados com filmes como Para Wong Foo, obrigado por tudo (1995), onde os personagens são colocados na categoria de anjos sem sexo.

O filme rapidamente coloca em questão a relação entre sexualidades divergentes e a boêmia, também detectada em outros trabalhos ambientados na mesma época na Espanha, a exemplo de Poucas Cinzas (2009). Neste caso, porém, a homossexualidade e o travestinidade é inscrita com mais força no seu contexto social subterrâneo, que relaciona profundamente sujeitos marginais. Maricões, anarquistas, operários pobres, prostitutas, . Sem tratar de personagens mundialmente famosos como Lorca e Dalí, proporciona um entedimento mais denso do submundo gay da época, e da sua relação, inclusive, com a política. Sem dúvida, um dos filmes mais interessantes do gênero.
Um adendo: o filme tem a participação de ninguém menos que Pedro Almodóvar, como Flor de Nicarágua, rainha da banana, uma das travestis que fazem show no Bataclán.²


¹ Bataclan também é o nome de uma famoso Cabaré na cidade de Ilhéus, Bahia, famosos nos anos 1920 e popularizado pelas obras de Jorge Amado, como Gabriela, Cravo e Canela. O Bataclan ilheense e sua congênere em Barcelona fazem referência a um famoso café-concerto parisiense, construído em 1864.

² Ver em  All About Amodóvar: A Passion for Cinema

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 23 de janeiro de 2014

Poucas cinzas (Little ashes, 2008)

Neste drama histórico dirigido por Paul Morrison e ambientando na Madri dos anos 1920 e 30, vemos a difícil relação entre três das maiores personalidades da primeira metade do século XX em seus campos de atuação: o pintor Salavador Dalí (Robert Patisson) e o poeta e dramaturgo Federico Garcia Lorca (Jávier Beltrán), além Luiz Buñuel (Mathew McNulty), cineasta de filmes como Un Chien Andalou (1928).

O filme enfoca a aproximação dos três ao longo de uma quase quinze anos: de 1922, quando Dali chega à residência de estudantes da Academia de Belas Artes, até 1928, ano que marcou o começo de um longo período de afastamento; e depois de 1928 a 1936, quando Dalí e Buñuel já em Paris participam de diversos movimentos de vanguarda como o surrealismo, ao mesmo tempo em que propõe uma forma de viver a arte diferente da de Lorca. Para este, o fundamental era transformar a Espanha, mas a partir do patrimônio cultural e dos temas relevantes para uma sociedade profundamente convulsionada pelos anseios democráticos da esquerda revolucionária e pelo facismo nacionalista. Buñuel, por sua vez, tinha uma proposta mais iconoclasta que questionaria a própria cultura espanhola, em lugar de tentar transformá-la de forma concreta. Dalí, por sua vez, acompanha Lorca num primeiro momento – antes de se decidir por uma posição apolítica e indiferente.

O foco do filme foi a difícil relação amorosa entre Federico Garcia Lorca e Salvador Dalí, enlace que ficou oculto do grande público por décadas. O longa demonstra não apenas a lenta aproximação física e intelectual entre os dois jovens estudantes, como deixa clara a homofobia reinante na maioria dos meios – inclusive no meio artístico, sendo esta repreensão presente sobretudo na figura de Buñuel. O relacionamento é pontuado pela personalidade exuberante e fora do comum de Dalí, profundamente amado, mas incompreendido, por Lorca. A situação chegou ao extremo quando foi descoberta por Buñuel, o que precipitou tanto a separação física e amorosa dos personagens quanto à opção por caminhos distintos de atuação política, artística e social.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 22 de Outubro de 2013

Baby Love (2008)

Dirigido por Vincent Garencq. Quais os limites e arranjos possíveis entre a identidade sexual e do desejo de ser pai? Este é o tema central do longa Baby Love (2008), longa-metragem francês centrando na figura de Manu (Lambert Wilson), um bem sucedido pediatra que deseja ser pai a todo custo, mesmo que a revelia de seu parceiro de longa data, Philip (Pascal Elbé), que termina por romper a relação com Manu quando este anuncia que entrou com um pedido de papéis para a adoção.

Tratando a parentalidade como algo aberto e frágil diante da falta de leis que permitam o casamento, ou da presença de diretrizes que impedem a doação por homossexuais. É assim que Manu se vê impedido de adotar um filho, devido à descoberta súbita, pela assistente social, da sua homossexualidade; e que termina por procurar a solução pouco usual de uma barriga de aluguel a partir de anúncios em sites de casais de lésbicas.

Neste contexto, Manu conhece e desenvolve uma relação de amizade com Fina (Pilar Lopez de Ayala), uma imigrante argentina ilegal que precisa de um casamento para permanecer em solo francês e realizar o sonho de trabalhar numa grande empresa. Sem grandes surpresas, termina aceitando ter o filho de Manu em troca do casamento que lhe garantiria um visto permanente.

A partir daí, a trama desenvolve uma reflexão interessante sobre o amor, a vontade (e o talento!) de ser pai e coisas que aprendemos como sendo naturais e que no cotidiano são sujeitas a negociação. A grande lição do filme é apresentar a identidade gay não como uma escolha entre a paternidade e a sexualidade, mas como um campo de possibilidades inclusive da formação de famílias e do direito de ser pai.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 18 de Outubro de 2013

Tomboy (2005)

Dirigido por Céline Sciama. Tomboy certamente é um dos filmes mais impactantes sobre infância, descobertas e a (não) naturalização de papéis de gênero. O longa enfoca algumas semanas na vida de Laure (Zoé Herán), que ao se mudar para um novo condomínio com a mãe grávida, o pai e a irmã assume gestos, vestimentas e comportamento do gênero oposto, inclusive com um novo nome – Mickael.

O longa apresenta com grande sensibilidade um processo que poderia ser melhor descrito como uma experiência de transgenerismo. Assim, Laure processualmente passa a viver como Mickael fora de casa, e como Laure lá dentro. Neste sentido, é um mérito absoluto do filme apresentar tanto a desnaturalização da associação entre sexo e gênero (respectivamente macho e fêmea, homem e mulher) como nuançar uma realidade dada pela natureza que parece fortemente dicotômica. Ou se é uma coisa ou outra, não existindo negociação possível.

A experiência de Mickael/Laure demonstra, talvez, o contrário. Por um lado, existe uma bagagem da experiência anterior da protagonista sobretudo na forma de vestir e na escolha de elementos e brincadeiras que tem a ver com o universo masculino, ao lado da própria proximidade com o pai. Por outro, é a experiência concreta dele/a que dá um sentido generizado e transgenerizado para o conteúdo do filme. Em outras palavras, a barreira entre as meninas-molecas, que se divertem com brincadeiras de meninos e usam roupas mais masculinas ou unisex, e as meninas transgênero pode ser muito mais fluída do que o olhar do que o espectador pode esperar.

O filme, conteúdo, parece referendar uma experiência de transgenerismo por em alguns momentos fundamentais: na escolha persistente de um nome próprio, na opção deliberada por roupas masculinas, e até mesmo na adequação do corpo que era possível de ser realizada para uma criança com menos de dez anos. Sensível, o filme não disfarça os momentos de tensão e de repressão, mas sem carregar demasiadamente nas cores. Neste sentido, é interessante a fala da mãe, ao desmascarar a farsa da filha: “eu não estou fazendo isto para punir você. Mas eu não sei mais o que fazer. Se você tiver uma ideia melhor, diga agora mesmo”. O leva o telespectador a pensar, também, sobre o quanto arranjos binários são limitadores dos sujeitos que passam por experiências divergentes da norma, como naqueles que se relacionam com eles.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 17 de Outubro de 2013