Boa noite a todas, todes e todos. É uma alegria enorme estar aqui. Agradeço muito a Elias, Rita e Benito, pela oportunidade de participar do simpósio, dos comentários generoso e atentos ao meu trabalho e, agora, da oportunidade de publicação. Bem como a Roberta, pela parte técnica, e a você, Joana, pela mediação. Eu preparei um pequeno material, para não me perder.
Meu nome é Daniel, e sou historiador formado pela UFBA até o doutorado, orientado pela professora Lígia Bellini. Desde 2013, trabalho com história da homossexualidade masculina no século XIX, sob o viés da higiene, da medicina legal e, atualmente, da psiquiatria. Neste capítulo, intitulado “Sobre andrômanos e ephebos: Notas sobre corpos rebeldes em Abel Botelho e Alfredo Gallis (1891-1906)”, um dos frutos do meu período Sanduíche no ICS/Ulisboa, orientado pela Drª Cristiana Bastos, eu faço uma incursão um tanto fora da minha área de atuação mais confortável, e busco refletir sobre literatura isso é, sobre duas obras literárias que foram influenciadas por concepções médicas.
A primeira é O Barão de Lavos, de Abel Botelho, publicada em 1891; a outra é o Sr. Ganymedes, de Alfredo Gallis, também conhecido como Rabelais, publicada em 1906. As duas obras foram escritas por autores portugueses, mas circularam dos dois lados do atlântico – estamos falando de uma rede de leitura e, sobretudo, de circulação de livros e ideias, e que não se limitava a um ou outro país. E as duas podem ser pensadas, de modo sumário, como naturalistas ou influenciadas pelo naturalismo. Isso explica o uso constante de metáforas, noções, vocabulário e abordagens dadas por obras de cariz médico psiquiátrico quando se tratava de práticas erótico-afetivas consideradas como dissidentes – Botelho vai falar de “atavismo”, e de “degeneração” no sentido médico; Gallis, por sua vez, vai citar explicitamente a obra do médico alemão Richard von Krafft-Ebing.
O barão de Lavos foca na vida de um nobre português, e no seu processo de decadência física e moral e morte em função de sua “andromania”, sua obsessão por se relacionar sexualmente com outros homens que corporificassem seu ideal de beleza, influenciado por exemplos pinçados da antiguidade clássica e do renascimento; já a obra de Alfredo Gallis, posterior, se detém sobre as desventuras de um efebo, isso é, um “invertido sexual” da classe burguesa em busca de um casamento de fachada com uma mulher mais velha e rica para manter um modo de vida extravagante com seu amado.
Os dois romances partilham, em larga medida, de uma leitura peculiar sobre o corpo, distinta da de algumas obras anteriores. Enquanto em obras como “O Ateneu”, ou ainda “Um homem gasto” os corpos, sexual e afetivamente desviantes são apresentados como perfectíveis, isso é, passíveis de uma intervenção normativa saneadora – quer médica, quer de outra ordem – estes dois trabalhos apontam para uma percepção algo distinta, na qual a diferença estava marcada na própria ordem da natureza.
Contudo, neste sentido, talvez inadvertidamente, os autores terminam apontando para os próprios limites de suas construções conceituais sobre gênero e sexualidade, e insistindo da necessidade da adoção de medidas de outra ordem, para deter os desviantes em nome do que se compreendia como “honra e segurança das famílias” – neste sentido, em script algo diverso daquele indicado pela medicina. Estes debates e redefinições sobre corpo, natureza, hierarquias e perfectibilidades no campo das sexualidades e afetividades dissidentes também tiveram lugar aqui no Brasil. Mas isso… é outra história.
É como se indicando o abjeto em termos emprestados pela medicina, definindo os contornos do invisível, dizendo do indizível, os dois literatos lusitanos terminam apontando a existência de outras configurações possíveis; e que, quando a ciência falhava em tratamentos ou previsões, a violência poderia ser um recurso de intervenção contra determinados sujeitos fora de ordem. Mas aí já é spoiler!
É isso, gente. Obrigado por terem me ouvido, fiquem bem. Viva o SUS, viva a luta de pessoas LGBTQI+ e fora genocidas! Obrigado.
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