Prefácio: este texto, escrito nos idos de 2008, apresenta grosso modo os problemas e a necessidade de um olhar crítico do telespectador sobre a representação associada à sexualidade na Grécia e Roma antigas. O texto contém alguns problemas de simplificação e alguns equívocos menores, que optei por não suprimir, ou fazê-lo o mínimo possível. O principal é tratar tanto da idade clássica quanto do tempo presente como generalidade – embora tenham especificidades e peculiaridades que tornam a generalização pouco desejável. Não obstante, mantenho o formato original pelo valor didático.
É um costume na área de história dizer frequentemente que obras de ficção situadas no passado dizem mais a respeito do nosso próprio tempo do que a respeito do passado em si[1]. Isto pode ser verificado com alguma facilidade: quantas vezes as falas de personagens de livros ou filmes parecem ser diretamente retiradas de um discurso feminista ou democrático? Pululam “mulheres devem ser livres” ou ainda “o rei deve zelar pela felicidade e ouvir os desejos de seus súditos”. Esta tendência, quando exagerada, resulta no anacronismo, um dos maiores equívocos para o historiador: atribuir ao passado demandas, expectativas e significados que pertencem ao presente. Para o historiador, nada pode ser atemporal: tudo, rigorosamente, está situado dentro de uma experiência de tempo que nos atinge no mais íntimo e aparentemente “natural” que nos cerca. Isto inclui, evidentemente, a sexualidade.
Frequentemente, filmes que tratam da antiguidade, sobretudo a grega e romana tomam algumas atitudes complicadas no que toca a sexualidade; uma delas pode ser resumida como a sexualidade reprimida, com modelos de casamento e famílias nucleares, linguagem que parece ter sido retirada de manuais de etiqueta vitorianos, e personagens perniciosos que estes sim são sexualmente depravados; a outra é a sexualidade exuberante, presente em absolutamente todos os momentos da vida e em todos os lugares – mesmo onde seria de se esperar austeridade, como o recinto dos templos ou o centro do poder.
Estes posicionamentos são repletos de problemas e questões que dizem mais a respeito de nós mesmos do que da experiência de sexualidade vivida pelos gregos e romanos antigos. Senão vejamos o primeiro caso: a sexualidade toma um modelo de família, aliado a noções como privado (espaço do exercício da sexualidade) e público (espaço onde ela não pode ser exercida) e projeta isto para antigas sociedades. É quase como se um “pudor vitoriano” cercasse as películas e os livros tratando destes povos, como revelam alguns filmes a exemplo de “Spartacus (1960)”.
Um bom exemplo envolve a noção de amor romântico. Ela surge constantemente, até mesmo em escravos, como é o caso do filme “Spartacus” tanto em sua versão de 1960 e de 2003. Pareceria pouco provável a um romano do século II a.C., que porventura assistisse ao filme que o amor entre os escravos se colocasse naqueles termos de devoção – supondo, até mesmo no caso de Espártaco, fidelidade matrimonial, sendo que eles sequer eram casados. Não é que amor e fidelidade não existissem: mas se pautavam por outros termos era exigida em outros termos. No caso dos romanos, por exemplo, o casamento prescindia do amor e a fidelidade era exigida da mulher uma vez que os filhos de homem deveriam ser legítimos. Ou no caso grego, temos a Ilíada de Homero: o rapto de Helena não é causa de uma guerra por ser uma traição ao casamento; os próprios deuses conspiraram para que ocorresse! O amor de Páris, inclusive, tem origem divina e não na pessoa de Helena. Muito mais importante era o desrespeito às normas de hospitalidade por parte de Páris e à aliança entre os príncipes gregos. Mas este aspecto mais “político” parece de somemos importância em Helena de Tróia (2003) onde o amor romântico entre ambos ganhou espaço. O mesmo se pode dizer a respeito de Tróia (2004).
Não raro, a homossexualidade é banida e transformada em algum tipo de íntima amizade despida de qualquer conotação erótica como a que cerca Aquiles e Patróclo em Tróia, respectivamente Brad Pitt e Garrett Hedlund. Teoricamente, isto tornaria o filme mais “palatável” [2], mesmo que a custo de uma deformidade histórica, já que pululam exemplos de pares de amantes guerreiros presentes inclusive em instituições públicas da pólis, como o Batalhão Sagrado da cidade-Estado de Tebas[3]. Alguns autores dizem que não há base no texto homérico para dizer que Aquiles e Patróclo eram amantes. Pode ser que não existam, mas os gregos e romanos antigos os citavam como modelos para o relacionamento entre dois amantes. Inclusive, existiam peregrinações a seus túmulos.
A outra posição pode parecer mais progressista. A sexualidade é proclamada, e a antiguidade parece ser o paraíso perdido da sexualidade livre de repreensão de quem quer que seja. Em alguns filmes, ao lado desta representação da sexualidade, o destino dos que a exercem e experimentam parece ser trágico ou pelo menos repleto de arrependimentos.
Superficialmente, parece ser o caso de filmes como Calígula (1980), de Tinto Brass, que escolho como caso exemplar. O filme retrata a vida do terceiro César[4] que passou á história como um tirano sanguinário e depravado sexual, que cometera incesto com sua irmã e tivera milhares de amantes de ambos os sexos; que interrompe casamentos para deflorar donzelas indefesas, e não raro seus próprios maridos.
Tal visão sobre este personagem histórico tem como fonte principal um livro importante, e que deve ser contextualizado cuidadosamente. É a famosa Vida dos Doze Césares[5] de Caio Suetônio Tranquilo. Escrita quase um século após a morte de Calígula, a obra carrega um profundo tom de moralidade e de reprovação do seu autor ao que ele chama de “excessos” dos Césares. Pouco se sabe sobre as razões que levaram Suetônio a escrever daquela maneira – além de uma literatura anterior que realmente propunha um modelo de conduta moral que deveria ser seguido. Entretanto, no contexto daquela época as ações de Calígula podiam ser moralmente reprováveis, mas não eram de maneira alguma incomuns. Pode-se pensar que era até mesmo generalizada, como sugere a leitura de obra como o Satiricon[6] de Petrônio, ou os famosíssimos grafites de Pompéia, conservados pelas cinzas do Vesúvio[7]. Para entender criticamente o lugar da sexualidade, a questão deve necessariamente ultrapassar a figura de Calígula: individualmente ele poderia ser ou não o demônio pintado na obra de Suetônio, mas de forma alguma isto se dá em função de sua sexualidade em si, mas sim do exercício que fere as normais morais daquela época. Ora, estas normas não parecem próximas das normas que existem em nossa época. A sexualidade modelar hoje que não admite carícias entre homens. Não era desta forma na antiguidade clássica, por mais natural e atemporal que possa parecer aos incautos. Da mesma maneira, e com mais agudez, na antiguidade clássica a pederastia era parte da educação do jovem cidadão da Pólis, e foi exaltada em mais de uma obra[8]. De forma que o estranhamento e a reprovação moral que o filme parece conter secretamente – afinal, basta ver o destino sangrento de Calígula como consequência não de todas suas atitudes como soberano, mas como fruto de sua depravação moral e sexual. Suetônio inclusive rejeitou centenas de anos atrás, esta hipótese monista: a queda de Calígula tem diversas razões, nas quais seus excessos ligados à sexualidade tem seu papel. Em suma: o filme guarda uma mensagem que a o destino de Calígula é marcado pela retribuição pela sua conduta, sobretudo a sexual e aguardaria a quem se dedicasse aos excessos daquela forma. Ora, este é um conteúdo que não possui grande ligação com a época. Os trapaceiros de Petrônio terminam o livro razoavelmente bem – escapando de um destino trágico nas mãos dos cortonianos, inclusive Gitão, o jovem pederasta amante de ambos os protagonistas. Muito diferente é o destino de Esporo, morto junto com seu senhor, Nero.
De forma que querendo fugir dos quadros mentais de nossa época, o filme termina revelando o mesmo tipo de amarra que os que representam a família nuclear comum no nosso presente, e a instituição pública e privada do casamento como o ponto central da sociedade e sua norma – mesmo que o imperador Augusto tenha sido obrigado a editar leis que incentivassem o casamento, que começava a parecer menos interessante a elite romana.
O objetivo não é criticar o filme em si. Sequer é o de exigir fidelidade histórica de obras de entretenimento. O historiador é preso a esta amarra que visa impedir que ele deforme o passado ao seu bel prazer, ou seja desonesto em relação a ele. O diretor de cinema, o editor, o escritor não possui este liame. A liberdade é a imaginação, não os registros históricos que nos chegaram de determinada época. O objetivo é propor ao leitor a necessidade de uma leitura crítica sobre os filmes, e a lembrança que numa película não é possível se dizer que “era assim naquela época” ou “que foi assim”. A história não é tão simples.
Trata-se, quem sabe, de fazer um adendo como fez o diretor italiano Fellini: quando filmou o Satiricon, em 1969: o título original não é Satyricon, ou Satyricon de Petrônio. Mas sim o Satyricon de Fellini, apenas baseado na obra escrita por Petrônio no século I. a diferença pode ser pequena no título e sutil (sutileza que a tradução brasileira não manteve) mas não deixa de ser menos importante.
(Publicado no Núcleo UNISex em 28 de dezembro de 2012)
[1] Sintetetizada por Marc Bloch, quando lembra do provérbio árabe: “os homens se parecem mais com seu tempo do que com seus país”. Ver: Bloch, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
[2] O palatável é irônico: parece ser uma estratégia para justificar a homofobia, satisfazer um mercado homofóbico, ou ambos.
[3] Citado por TORRÃO FILHO, Amílcar. Tríbades Galantes, fanchonos militantes. Homossexuais que fizeram história. São Paulo: Edições GLS, 2000.
[4] Após a morte de Caio Júlio César, o primeiro César da História, o nome passou a designar grosso modo a figura do soberano romano. Ele tinha outros títulos, como o de Pai da Pátria e Imperator (chefe do exército).
[5] Suetônio. Vida dos Doze Césares. 5ª Edição. São Paulo: Atena, 1956. Biblioteca Clássica.
[6]Ver: Petrônio. Satiricon. São Paulo: Abril Cultural, 1981. 207p.
[7] FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Cultura popular na Antiguidade Clássica: grafites e arte, erotismo, sensualidade e amor, poesia e cultura. São Paulo: Contexto, 1989. 80p.
[8] O caso mais famoso, naturalmente, é O Banquete. Ver PLATÃO. O Banquete. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2008. Na época da escrita deste texto, usei uma edição da Martin Claret, que desaconselho por conta de pontos pouco claros da tradução. A de Donaldo Schüler conta com tradução, notas e comentários que são preciosos. Ver sobretudo as páginas 41-51. Sobre a pederastia, o livro de divulgação organizado por Paul Cartledge, História Ilustrada da Grécia Antiga, trata do assunto em dois boxes: nas páginas 195-6 e 282-3. Apesar de não ser uma obra muito profunda, tem o mérito de resumir sumariamente alguns aspectos da relação entre erástes e erómenos. Ver: Cartledge, Paul. História Ilustrada da Grécia Antiga. Rio de Janeiro: Ediouro, (S.D.).