Complexificando a experiência homoerótica
Borboletas da vida é um filme diferente dos que costumam ser exibidos e discutidos no Tardes de Cinema. Em primeiro lugar, pelas dimensões – é pouco mais do que um curta metragem, do alto dos seus 38 minutos. Mas o tempo relativamente curto em relação a outros filmes e documentários não se traduz em falta de qualidade. Antes pelo contrário. Borboletas da vida é uma cartografia da experiência homoerótica no Rio de Janeiro, mas a partir da perspectiva da periferia – e não do centro geográfico e cultural dos calçadões de copacabana ou dos arcos da lapa. Mais precisamente, enfoca o microcosmo da baixada fluminense, sobretudo de Austin e Nova Iguaçu.
O foco do filme são as narrativas das experiências de vida de diferentes sujeitos a partir de suas vivências do homoerótismo. Também tem um tom de denúncia, no qual as astúcias e estratégias de sobrevivência ganham um tom heróico de subversão do sistema e de contestação da violência pelas bichas-boy, identidade ostentada pelas personagens do documentário. Assim, a metáfora de Borboletas da vida, talvez conduzida algumas vezes de forma equivocada, serve para pensar as trajetórias em dois vetores principais: primeiro, como transformação de um estado de larva a borboleta, da prisão ao chão (social) para a liberdade de alçar vôo, expressada na adoção de gestos, estética e jeito de corpo que fogem ao normal; em segundo lugar, metáfora da sobrevivência, pois a beleza da borboleta também funcionou como camuflagem para evitar predadores – o que expressou a negociação da vivência homoerótica em função do contexto social de intolerância e violência, mas que não impediu totalmente esta experiêcia.
Trazendo histórias de vida distintas, mas com um corte social relativamente aproximado – são pessoas de menor renda e escolaridade – o filme apresentou um interessante discurso em torno da identidade das bichas-boy. Sem se indentificaram como travestis, e muito menos como trangêneros – mas com elementos partilhados com ambas identidades -as bichas-boys vivem uma situação de ambivalência da qual sabem habilmente tirar partido. Reconhecendo que, ao assumir uma performance de gênero diferente da expectativa dada pelo sexo anatômico existem riscos de vida, de subsistência ou de sobrevivência,as bicha-boys fervem ou fazem shows levando na mala suas individualidades subterrâneas e deixando-as sair quando possível. Indício da resistência em condições difíceis, o documentários traduz habilmente o quando o subordinado pode, muitas vezes, negociar os termos de sua própria subordinação. Sem deixarem de viver uma identidade irreverente e resistente as normas, as bicha-boys demonstram o quanto a sociedade e as vivências do homoerotismo podem e deverm ser complexadas além de caixinhas como “travesti”, “gay”, “hetero”, etc.
Isto não significa, contudo, propor uma nova caixinha para estes sujeitos. Ao contrário. Embora existem elementos comuns apresentados no filme pelas bichas-boys, como por exemplo não optar por cirurgias de mudança corporal (“botar peitinho ou bunda”), ou levar a “bicha na mochila”, existem graus diferentes e formas diferentes de viver suas especificidades. Desde aqueles que são bichas-boys apenas nos espetáculos que realizam, se aproximando mais do imaginários das drag-queens, passando pelos que tem um jeito de corpo dentro de casa ou quando em grupo, os que vivem esta identidade de forma mais contínua. Por trás de tudo, entretanto, desponta uma espécie de “rede de sociabilidade” que mesmo com tensões geracionais (velha-guarda versus novas) proporcionaram um quadro de referência e, em muitos casos, de apoio para as bicha-boys. Num cenário de violência constante, o papel e a necessidade destes grupos de apoio mútuo é fundamental. Pleiteando, muitas vezes, a falta de um centro de assistência social (jurídica, psicológica, e de convivência) direcionados a homossexuais, travestis e bichas-boy, não deixam de ocupar espaços próprios. Um deles foi a casa noturna o site club, na qual as bicha-boys se vestem, maquiam e fervem a noite na pista e no palco.
Embora promovido pela ABIA – Associação brasileira interdisciplinar da AIDS, fundada por Betinho – a temática da AIDS apareceu de forma muito breve no filme, sobretudo no final quando o dono do site Club, Julio, demonstra preocupação em conscientizar os frequentadores quanto aos perigos da doença. Outro grande mérito do documentário foi não patologizar ou apoiar a ficção vivência homoerótica -> doença. Ou invés disto, denuncia frontalmente a ausência do poder público e as estratégias de sobrevivência das bichas-boys.
Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 5 de fevereiro de 2014 às 19:46