A descoberta e ocultação da homossexualidade ainda hoje é motivo de dor, infelicidade e mentiras. Não raro, a performance da identidade sexual dentro de uma perspectiva de heterossexualidade compulsória é problema com os quais indivíduos homossexuais precisam lidar cotidianamente. A tensão entre desejo e afetividade em contraste com expectativas sociais em torno do desempenho esperado e exigido de certo lugar social constitui um dos grandes dilemas do processo de descoberta, e de suas derivações.
Há uma vasta produção cinematográfica em torno dos sofrimentos dos homossexuais com as expectativas tensionados até um extremo com os desejos. Desde Um homem chamado flor de outono, até os Rapazes da banda, dezenas de filmes passearam pela amargura, desejo, amor, descoberta, saída do armário, etc. Contudo, muitos poucos falam das experiências daqueles que, uma vez tocados pela homossexualidade de uma pessoa próxima, precisam reconfigurar seu universo de referências de mundo e de relações. Uma excelente produção sobre o tema, sem sombra de dúvida, é Longe do paraíso, filme Todd Haynes, com uma magistral atuação de Julianne Moore, que lhe valeu uma indicação ao Óscar.
O enredo do filme é simples: Vivendo confortavelmente no surbúbio de Hathford, Connecticut, Catheleen (J. Moore) e Frank Whittaker são um típico casal de classe alta do final dos anos 1950 nos Estados Unidos: brancos, prósperos, com um casal de filhos, numa casa grande com jardim, uma empregada negra e um jardineiro – também negro. Executivo de uma empresa de televisores, Frank com sua bela esposa e impecável casamento é o principal garoto propaganda da marca. Em suma: para a educada, gentil e bela Kathy Whittaker, uma vida cor-de-rosa.
O mundo de Kathy começa a se despedaçar quando ela descobre que Frank, depois das longas horas-extras no escritório, tem encontros sexuais com outros homens. Chocada, Kathy exige que Frank se trate com um médico, o que gera um período de estabilidade e brigas entre ambos, culminando em agressão física. Neste meio tempo, Kathy desenvolve uma relação de proximidade e atração com o cavalheiro, belo e culto jardineiro, Raymond Deagan (Dennis Haysbert). Bom pai, trabalhador dedicado, elegante e gentil, ele encarna em certa medida os pontos que Frank lentamente deixa de ocupar na vida de Kathy.
Mas a relação quase que espiritual de Raymond e Kathy é motivo de grandes comoções na cidade. Por uma razão muito simples: Raymond é negro, e qualquer associação entre uma mulher branca e um homem negro aparece sob o signo da suspeita. Lentamente, Kathy deixa de ser a Mrs. Magnatech, garota-propaganda da marca, para se tornar uma personagem suspeita de adultério e de associação com movimentos pró-igualdade. A relação leva ao afastamento entre ambos, com consequências dolorosas: a filha de Raymond é apedrejada, assim como a casa do ex-jardineiro torna-se alvo de pedradas. Sem suportar o ódio da comunidade, ele termina migrando para o sul – quase ao mesmo tempo no qual Frank descobre o amor por um jovem rapaz, e decide se divorciar de Kathy para viver a paixão com outro homem.
Sem soluções fáceis nem pré-julgamentos, e longe de uma visão heróica sobre relações afetivas interraciais ou homossexuais, o filme tem o mérito de apresentar ao leitor uma reflexão inquietante: num mundo onde todos são vigiados cotidianamente, em vários níveis de sua experiência íntima, qual o limite possível para se falar de privacidade? E mais: o quando atos sexuais e\ou afetivos que fogem a uma norma tem mais envolvidos do que pode parecer a primeira vista.
Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 25 de fevereiro de 2014