Longe do Paraíso (2002)

A descoberta e ocultação da homossexualidade ainda hoje é motivo de dor, infelicidade e mentiras. Não raro, a performance da identidade sexual dentro de uma perspectiva de heterossexualidade compulsória é problema com os quais indivíduos homossexuais precisam lidar cotidianamente. A tensão entre desejo e afetividade em contraste com expectativas sociais em torno do desempenho esperado e exigido de certo lugar social constitui um dos grandes dilemas do processo de descoberta, e de suas derivações.

Há uma vasta produção cinematográfica em torno dos sofrimentos dos homossexuais com as expectativas tensionados até um extremo com os desejos. Desde Um homem chamado flor de outono, até os Rapazes da banda, dezenas de filmes passearam pela amargura, desejo, amor, descoberta, saída do armário, etc. Contudo, muitos poucos falam das experiências daqueles que, uma vez tocados pela homossexualidade de uma pessoa próxima, precisam reconfigurar seu universo de referências de mundo e de relações. Uma excelente produção sobre o tema, sem sombra de dúvida, é Longe do paraíso, filme Todd Haynes, com uma magistral atuação de Julianne Moore, que lhe valeu uma indicação ao Óscar.
O enredo do filme é simples: Vivendo confortavelmente no surbúbio de Hathford, Connecticut, Catheleen (J. Moore) e Frank Whittaker são um típico casal de classe alta do final dos anos 1950 nos Estados Unidos: brancos, prósperos, com um casal de filhos, numa casa grande com jardim, uma empregada negra e um jardineiro – também negro. Executivo de uma empresa de televisores, Frank com sua bela esposa e impecável casamento é o principal garoto propaganda da marca. Em suma: para a educada, gentil e bela Kathy Whittaker, uma vida cor-de-rosa.

O mundo de Kathy começa a se despedaçar quando ela descobre que Frank, depois das longas horas-extras no escritório, tem encontros sexuais com outros homens. Chocada, Kathy exige que Frank se trate com um médico, o que gera um período de estabilidade e brigas entre ambos, culminando em agressão física. Neste meio tempo, Kathy desenvolve uma relação de proximidade e atração com o cavalheiro, belo e culto jardineiro, Raymond Deagan (Dennis Haysbert). Bom pai, trabalhador dedicado, elegante e gentil, ele encarna em certa medida os pontos que Frank lentamente deixa de ocupar na vida de Kathy.

Mas a relação quase que espiritual de Raymond e Kathy é motivo de grandes comoções na cidade. Por uma razão muito simples: Raymond é negro, e qualquer associação entre uma mulher branca e um homem negro aparece sob o signo da suspeita. Lentamente, Kathy deixa de ser a Mrs. Magnatech, garota-propaganda da marca, para se tornar uma personagem suspeita de adultério e de associação com movimentos pró-igualdade. A relação leva ao afastamento entre ambos, com consequências dolorosas: a filha de Raymond é apedrejada, assim como a casa do ex-jardineiro torna-se alvo de pedradas. Sem suportar o ódio da comunidade, ele termina migrando para o sul – quase ao mesmo tempo no qual Frank descobre o amor por um jovem rapaz, e decide se divorciar de Kathy para viver a paixão com outro homem.

Sem soluções fáceis nem pré-julgamentos, e longe de uma visão heróica sobre relações afetivas interraciais ou homossexuais, o filme tem o mérito de apresentar ao leitor uma reflexão inquietante: num mundo onde todos são vigiados cotidianamente, em vários níveis de sua experiência íntima, qual o limite possível para se falar de privacidade? E mais: o quando atos sexuais e\ou afetivos que fogem a uma norma tem mais envolvidos do que pode parecer a primeira vista.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 25 de fevereiro de 2014

Mambo Italiano (2003)

Nesta comédia de 2003, o diretor Émile Gaudreault retratou com maestria a acomodação da homossexualidade por uma tradicional – ou nem tanto – família italiana. O longa gira em torno da saída do armário de Angelo Barberini (Luke Kirby) o filho mais novo de um casal de imigrantes italianos que vivem confortavelmente instalados num bairro italiano numa grande cidade canadense. Angelo está longe de ser o filho ideal para Gino (Paul Sorvino) e Maria (Ginette Reno): além de não desejar seguir a profissão dos sonhos dos pais, como advogado, o jovem se sente preso às aspirações e preconceitos da comunidade onde vive. Além destas questões, Angelo tem outro grande segredo: é homossexual no armário para a família, e morre de medo que os pais descubram seu grande segredo.

O longa nos transfere, logo nos seus primeiros minutos para o passado e presente imediato de Angelo, mostrando como a homossexualidade desviante sempre foi um problema desde a infância. Na escola, seus colegas o humilhavam, e o bullying termina separando Angelo de seu melhor amigo de infância, Nino Paventi (Peter Miller). Junto com a criação sufocante dos pais e a morte da tia Yollanda (Tara Nicodemo), única pessoa que parecia compreender o inconformismo de Angelo, estes fatos perseguem o protagonistas como fantasmas poderosos até o final do filme. A solução inicial que Angelo encontra é sair da casa dos pais aos 27 anos, o que gera uma crise familiar profunda, afinal, qualquer saída antes do casamento ou da morte parece prematura na tradicional família Barberini.

A trama do filme passa, então, para o enredo principal com o relacionamento secreto entre Nino e Angelo, que voltaram a ser amigos depois de tantos anos de afastamento. Inicialmente satisfeito com o segredo, rapidamente Angelo se desgasta com as mentiras que precisa contar aos pais, que insistem em arrumar belas moças para sair com o filho. A saída do armário precipita a descoberta do relacionamento entre Angelo e Nino, e desencadeia a crise das duas famílias em como lidar com dois “omossessuales”. Aqui o longa começa a ganhar mais profundidade, sem deixar de lado o humor: enquanto os Barberini saem de um contexto de negação para a aceitação do filho, tentando acomodar tanto a tradição de uma família italiana quanto as diferenças e inconformidades que Angelo apresenta, a mãe viúva de Nino, Lina Paventi (Mary Walsh) simplesmente opta por ignorar a homossexualidade do seu filho. Nino não é homossexual, mas sim um comedor, que passava por uma fase da qual em breve sairia. Lina ao longo do filme procura vencer pelo cansaço a resistência de Nino, tentando conformar seu filho ao papel para o qual ele parecia destinado: policial respeitável, filho adorado, marido perfeito. O resultado deste empreendimento é o matrimônio de Nino com a pouco respeitável Pina Lunetti (Sophie Lorain), também colega de escola dos rapazes.

A acomodação da homossexualidade pela família, no filme, é mostrada sobre estes dois prismas, bastante diversos entre si. Por um lado, a aceitação lenta e gradual pelos Barberini; por outro, a opção de ignorar e mascarar pelos Paventi. Sem fazer necessariamente um elogio de um e outro, o diretor demonstra com maestria como o processo de identificação com algo – uma comunidade, neste caso – é negociado e mediado por valores e aspirações com as quais os personagens são criados (HALL, 2011, p.p 77-91). Angelo sempre experimentou uma masculinidade subalternizada, e de certa forma esta experiência de estar à margem abria espaço para que ele buscasse outras referências, externas ao mundo da comunidade italiana. Assim, Angelo experimenta a visita, por exemplo, ao gay village, o bairro gay. Após a visita, embora assuma um discurso de rejeição da identidade gay, Angelo não deixa de se sentir questionado por ela a ponto de admitir a possibilidade de se encontrar naquela comunidade. Mais: a rejeição da identidade gay e do bairro gay parece ser causada muito mais por uma pressão externa do que por uma opção deliberada de Angelo. Assim, o personagem admite odiar o bairro gay apenas quando Nino se aborrece pela visita. Da mesma forma, Angelo se pergunta a razão do namorado não desejar pertencer à associação de policiais gays – demonstrando o quanto o seu pertencimento a identidade comunal criada no bairro italiano é em verdade frágil e sujeita a adaptações.

Isto explica, inclusive, a dimensão humana de Nino e Angelo. O primeiro não admite a identidade gay, e tenta sublimar ou, na impossibilidade, ocultar seus desejos por homens. Inclusive o casamento não o impede de se relacionar com outros homens fora do leito conjugal, colocando em dúvida a “conversão” que Pina afirmava ter realizado. O desejo por homens e a rejeição da identidade gay aproxima Nino da ambiguidade do comedor, tensionado entre desejo e papel social. Neste sentido, o momento no qual as famílias mais se hostilizam é quando Lina e Gino discutem quem é o ativo e o passivo da relação.

Por sua vez, Angelo não é um protagonista heroico. Revela-se muitas vezes grosseiro com os pais, intragável com a irmã e pouco compreensivo com o namorado. Em dado momento, quando decide se tornar voluntário no tele-ajuda gay, Angelo é incapaz de mostrar algum nível de empatia com o sofrimento alheio. Ao mesmo tempo, diz desgostar de efeminados. Neste momento em especial demonstra uma marca muito comum entre gays: a rejeição da efeminação, como se de alguma forma a aproximação com o feminino fosse algo deletério, que deve ser evitado a todo custo. Colocando esta frase na boca do protagonista, o diretor não apenas o aproxima do telespectador, como ironiza o preconceito de Angelo: embora diga isto dos efeminados, é notável a própria aparência pouco máscula do personagem, que permite que ele seja pensado como tão efeminado como aqueles que ele critica.

Usando com inteligência ironia e humor, o diretor constrói uma comédia leve, onde os personagens são seres humanos fragmentados constantemente negociando e construindo suas identidades. Entre estar no bairro gay ou no bairro italiano, Angelo e Nino adaptam e negociam os termos do exercício de sua sexualidade, com maior ou menor sucesso. Sem falsos moralismos, o filme destaca o aspecto mais construtivo da identidade gay ou heterossexual, proporcionando uma interessante reflexão sobre preconceitos, família, aceitação e homossexualidade.

Referências:
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro, RJ: DP & A, 2006. 102 p.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 21 de Novembro de 2013