Borboletas da vida (2007)

Complexificando a experiência homoerótica

 

Borboletas da vida é um filme diferente dos que costumam ser exibidos e discutidos no Tardes de Cinema. Em primeiro lugar, pelas dimensões – é pouco mais do que um curta metragem, do alto dos seus 38 minutos. Mas o tempo relativamente curto em relação a outros filmes e documentários não se traduz em falta de qualidade. Antes pelo contrário. Borboletas da vida é uma cartografia da experiência homoerótica no Rio de Janeiro, mas a partir da perspectiva da periferia – e não do centro geográfico e cultural dos calçadões de copacabana ou dos arcos da lapa. Mais precisamente, enfoca o microcosmo da baixada fluminense, sobretudo de Austin e Nova Iguaçu.

O foco do filme são as narrativas das experiências de vida de diferentes sujeitos a partir de suas vivências do homoerótismo. Também tem um tom de denúncia, no qual as astúcias e estratégias de sobrevivência ganham um tom heróico de subversão do sistema e de contestação da violência pelas bichas-boy, identidade ostentada pelas personagens do documentário. Assim, a metáfora de Borboletas da vida, talvez conduzida algumas vezes de forma equivocada, serve para pensar as trajetórias em dois vetores principais: primeiro, como transformação de um estado de larva a borboleta, da prisão ao chão (social) para a liberdade de alçar vôo, expressada na adoção de gestos, estética e jeito de corpo que fogem ao normal; em segundo lugar, metáfora da sobrevivência, pois a beleza da borboleta também funcionou como camuflagem para evitar predadores – o que expressou a negociação da vivência homoerótica em função do contexto social de intolerância e violência, mas que não impediu totalmente esta experiêcia.

Trazendo histórias de vida distintas, mas com um corte social relativamente aproximado – são pessoas de menor renda e escolaridade – o filme apresentou um interessante discurso em torno da identidade das bichas-boy. Sem se indentificaram como travestis, e muito menos como trangêneros – mas com elementos partilhados com ambas identidades -as bichas-boys vivem uma situação de ambivalência da qual sabem habilmente tirar partido. Reconhecendo que, ao assumir uma performance de gênero diferente da expectativa dada pelo sexo anatômico existem riscos de vida, de subsistência ou de sobrevivência,as bicha-boys fervem ou fazem shows levando na mala suas individualidades subterrâneas e deixando-as sair quando possível. Indício da resistência em condições difíceis, o documentários traduz habilmente o quando o subordinado pode, muitas vezes, negociar os termos de sua própria subordinação. Sem deixarem de viver uma identidade irreverente e resistente as normas, as bicha-boys demonstram o quanto a sociedade e as vivências do homoerotismo podem e deverm ser complexadas além de caixinhas como “travesti”, “gay”, “hetero”, etc.

Isto não significa, contudo, propor uma nova caixinha para estes sujeitos. Ao contrário. Embora existem elementos comuns apresentados no filme pelas bichas-boys, como por exemplo não optar por cirurgias de mudança corporal (“botar peitinho ou bunda”), ou levar a “bicha na mochila”, existem graus diferentes e formas diferentes de viver suas especificidades. Desde aqueles que são bichas-boys apenas nos espetáculos que realizam, se aproximando mais do imaginários das drag-queens, passando pelos que tem um jeito de corpo dentro de casa ou quando em grupo, os que vivem esta identidade de forma mais contínua. Por trás de tudo, entretanto, desponta uma espécie de “rede de sociabilidade” que mesmo com tensões geracionais (velha-guarda versus novas) proporcionaram um quadro de referência e, em muitos casos, de apoio para as bicha-boys. Num cenário de violência constante, o papel e a necessidade destes grupos de apoio mútuo é fundamental. Pleiteando, muitas vezes, a falta de um centro de assistência social (jurídica, psicológica, e de convivência) direcionados a homossexuais, travestis e bichas-boy, não deixam de ocupar espaços próprios. Um deles foi a casa noturna o site club, na qual as bicha-boys se vestem, maquiam e fervem a noite na pista e no palco.

Embora promovido pela ABIA – Associação brasileira interdisciplinar da AIDS, fundada por Betinho – a temática da AIDS apareceu de forma muito breve no filme, sobretudo no final quando o dono do site Club, Julio, demonstra preocupação em conscientizar os frequentadores quanto aos perigos da doença. Outro grande mérito do documentário foi não patologizar ou apoiar a ficção vivência homoerótica -> doença. Ou invés disto, denuncia frontalmente a ausência do poder público e as estratégias de sobrevivência das bichas-boys.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 5 de fevereiro de 2014 às 19:46

Pecado da Carne (2009)

Pecado da carne, filme de 2009 dirigido por Haim Tabakman é um filme dotado de atmosfera. De fato, o longa transporta o telespectador para as sufocantes ruas do Meah Shearim, o bairro ultra-ortodoxo de Jerusalém, onde uma história de amor entre dois homens termina florescendo com consequências severas.

O longa gira em torno de Aaron Fleischman (Zohar Shtrauss), um dos mais respeitáveis membros da comunidade. Estudioso dos textos sagrados, pai e marido devotado, Aaron também trabalha como açougueiro da comunidade – função importante especialmente num subgrupo judaico que leva as estritas regras dietéticas a extremos. Responsável por uma função tão importante, o protagonista é obrigado a colocar um aviso de busca de um ajudante, já que o volume de trabalho é muito grande. Neste ponto do filme, somos apresentado ao jovem, belo e misterioso Erzi (Ran Danker), que foi aparentemente abandonado por um amigo. Sem lugar para ficar, ele pede emprego a Aaron, que consente em admitir o jovem sem experiência na função.

O filme em seguida apresenta a lenta aproximação física e afetiva dos dois homens, mostrando a tensão sexual entre Aaron e Erzi. Se o desejo por outros homens é rapidamente mostrado por Erzi, que busca reatar a amizade com um rapaz com o qual se envolvera pouco antes, Aaron é a outra face. Não apenas mais contido – se bem que mostrando um desejo sublimado pelo assistente – como também ligado a um discurso religioso que evoca a resistência ao desejo por outros homens.

Rapidamente, entretanto, a relação com Erzi se torna uma alternativa de vida para Aaron: não apenas um assistente ou um amante, mas uma possibilidade de escapar de um cotidiano difícil em em grande parte pouco satisfatório. Seja como pai, religioso ou marido, a frágil arquitetura de vida de Aaron não resiste ao desejo representado pelo assistente.

Neste trecho fica patente um dos elementos mais interessantes do filme: a sensação do sufocamento se traduz numa vigilância da comunidade enquanto instituição das condutas – inclusive sexuais – de seus membros. O romance entre ambos começa a se tornar de conhecimento público, despertando a ira dos vizinhos por duas razões: tanto a relação entre os dois entra no rol do que era considerado uma abominação, como implica no rompimento da confiança como guardião da pureza da comunidade na forma do seu papel como açougueiro. Assim, a mobilização contra os dois é bem mais poderosa do que um caso temporalmente análogo de sexo antes do casamento.
Sem soluções fáceis, o grande mérito de Pecado da Carne é pensar como as vivências do homoerotismo possuem soluções que em seu contexto podem ter consequências bastante graves. Neste sentido, não deixa de ser uma importante reflexão sobre tolerância e intolerância, imposições religiosas de ordem religiosa, bem como os graus de internalização e de concilialção que estas regras podem ter nos sujeitos que vivem sobre elas.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 07 de Janeiro de 2014

Pink money, Parte I

O cenário é uma grande livraria da cidade de Salvador. Público certo, cotidiano, agitado e diverso dentro de quem pode frequentar aquele tipo de estabelecimento.  Gente apressada, gente com tempo, gente correndo atrás de presentes ou de entretenimento. Pessoalmente, nada a fazer por ali exceto esperar pelas compras da minha carona – e ler alguma coisa de passagem.

Sem muita paciência pra livros amplos ou difíceis, passeio muito pra lá e pra cá. Passo na parte de história, claro, quando vejo uma pequena prateleira com livros de temáticas GLS. Tremenda surpresa, naquele canto esquecido na livraria (que parece bem ordenada: bestselers > literatura > filosofia > história > GLS, entre filosofia e história). Folheio muito interessado os livros. Bastante literatura picante, alguns livros informativos. Algo de psicologia, e um livro com esquetes do Tom of Finland. Um rapaz ao meu lado olha num tom meio especulativo para mim, talvez chocado ou estimulado com a capa do livro.

Mas a questão que fica mais ou menos incômoda pelo resto do dia é esta: porque este lugar na livraria? Porque tão escondida? Porque aquele tipo de literatura? Porque tantos autores homossexuais e gays, ou com trabalhos nesta temática – fico apenas com Wilde ou Kenneth J Dover que não estão por lá – não tem espaço nesta pequena prateleira? Ou, posto de outra forma, que tipo de lógica governa esta ordem dos espaços dentro de uma livraria?

Neste caso, alguns pontos parecem bastante claros. Um, é inegavelmente um passo a frente colocar uma prateleira de temática GLS/LGBTT numa grande livraria. Dois: autores consagrados ou acadêmicos que tenham temática homossexual não entram nestas prateleiras. São relegados a lugares mais visíveis. Mesmo quando o livro desenvolve uma análise sobre a homossexualidade, parece existir algum tipo de segregação. Como se apenas quando a temática gay fosse um rótulo irremovível (sem chances para “literatura”, ou “história”) é que deva ser colocado naquela prateleira. Terceiro, o local é bem particular. Entre história e filosofia, dentro do campo das humanidades. Pouca produção? Pouca procura? Um pouco dos dois, talvez? Respostas em aberto.

Em tempos onde o Pink Money começa a interessar empresários no Brasil, pouco me admira que as pessoas tentem surfar nesta onda, lucrando poderosamente com o jogo das identidades no presente. Os elementos que podem ser significados como partes do pertencimento determinado ideal – marcas de cuecas, sungas, óculos, tipos de música e em menor grau literatura e cinema – também integram este jogo. Neste meio tempo, a visibilidade pode vir de duas “raízes”, por assim dizer. Uma delas é a da tolerância pragmática, devido ao dinheiro. Comprar a leniência, silêncio ou assentimento do outro, por assim dizer. A outra talvez tenha origem numa aceitação da diversidade – onde o particular integra, questiona e transforma o modelo. Acharia pobre estar num relacionamento com um gay machista. Também acho pobre privilegiar produtos que reproduzam pura e simplesmente estereótipos – como o machismo da frase anterior. Ambas podem ser encontradas, creio, no Pink Money – ou em prateleiras de produtos direcionados.

Mas há mais. Não estou defendendo a supercompartimentalização. Eu não compraria um livro ou objeto somente porque seu autor é gay. Nem acho que todos os produtos elaborados com esta temática devem estar dentro da prateleira GLS da livraria (ou da caixinha)… Mas gostaria que a divisão não fosse de tantos extremos, entre o tudo e o quase nada. Claro, num tempo onde o processo de construção identitária ainda está em negociação estas dicotomias são compreensíveis – mas não creio que devemos nos deixar levar por ela. Gostaria, talvez, que a temática GLBTT/GLS mobilizasse tanto as obras da livraria quando subtemas relevantes a exemplo de literatura fantástica ou direito administrativo mobilizam.

Apenas uma lembrança. Um dos primeiros lugares onde encontrei livros com temática GLBTT de todos os tipos – histórica, filosófica, literária e erótica – foi à livraria Grandes Autores, que ficava em Ondina a menos de vinte metros do meu colégio. Depois da aula, corria pra lá e fazia minhas leituras clandestinas em pé na prateleira, morrendo de medo da próxima página de um romance gay e da chegada de um colega de sala. Mas foi nesta mesma prateleira que vi pela primeira vez obras como os devassos no paraíso de Trevisan, ou os tríbades galantes, fanchonos militantes de Torrão Filho. Quase dez anos atrás a livraria deu lugar a um banco do Brasil. Numa grande livraria ou sebo, nunca mais vi qualquer literatura ou estante gay. No máximo, uma de erotismo/sexualidade/sexologia. Agora eu vejo, e fico com minha cisma. O que mudou?

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 26 de Novembro de 2013

Tomboy (2005)

Dirigido por Céline Sciama. Tomboy certamente é um dos filmes mais impactantes sobre infância, descobertas e a (não) naturalização de papéis de gênero. O longa enfoca algumas semanas na vida de Laure (Zoé Herán), que ao se mudar para um novo condomínio com a mãe grávida, o pai e a irmã assume gestos, vestimentas e comportamento do gênero oposto, inclusive com um novo nome – Mickael.

O longa apresenta com grande sensibilidade um processo que poderia ser melhor descrito como uma experiência de transgenerismo. Assim, Laure processualmente passa a viver como Mickael fora de casa, e como Laure lá dentro. Neste sentido, é um mérito absoluto do filme apresentar tanto a desnaturalização da associação entre sexo e gênero (respectivamente macho e fêmea, homem e mulher) como nuançar uma realidade dada pela natureza que parece fortemente dicotômica. Ou se é uma coisa ou outra, não existindo negociação possível.

A experiência de Mickael/Laure demonstra, talvez, o contrário. Por um lado, existe uma bagagem da experiência anterior da protagonista sobretudo na forma de vestir e na escolha de elementos e brincadeiras que tem a ver com o universo masculino, ao lado da própria proximidade com o pai. Por outro, é a experiência concreta dele/a que dá um sentido generizado e transgenerizado para o conteúdo do filme. Em outras palavras, a barreira entre as meninas-molecas, que se divertem com brincadeiras de meninos e usam roupas mais masculinas ou unisex, e as meninas transgênero pode ser muito mais fluída do que o olhar do que o espectador pode esperar.

O filme, conteúdo, parece referendar uma experiência de transgenerismo por em alguns momentos fundamentais: na escolha persistente de um nome próprio, na opção deliberada por roupas masculinas, e até mesmo na adequação do corpo que era possível de ser realizada para uma criança com menos de dez anos. Sensível, o filme não disfarça os momentos de tensão e de repressão, mas sem carregar demasiadamente nas cores. Neste sentido, é interessante a fala da mãe, ao desmascarar a farsa da filha: “eu não estou fazendo isto para punir você. Mas eu não sei mais o que fazer. Se você tiver uma ideia melhor, diga agora mesmo”. O leva o telespectador a pensar, também, sobre o quanto arranjos binários são limitadores dos sujeitos que passam por experiências divergentes da norma, como naqueles que se relacionam com eles.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 17 de Outubro de 2013

Um toque de Rosa: culturas, identidades e conflitos.

Eu vi um jovem gracioso na mesquita
lindo como a lua quando ela aparece.
Aqueles que o veem curvando-se para orar dizem:
“todos os meus desejos são que ele se prostre ainda mais”

(TORRÃO FILHO, 2000, p. 100)

Um toque de rosa (2004) foi uma surpresa relativamente agradável. A referência que eu tinha era a de um filme bobo, bastante açucarado e sem maiores problemas. Superficial, era o tipo de película para passar na sessão da tarde, na medida para um público adolescente. As discussões dos temas levantados pelo filme prometiam ser superficiais e mereceriam pouca atenção. Ledo engano. Por muito que não tenha sido um filme visceral, diversas discussões interessantes perpassam pelo filme.

O longa girou em torno da vida de Alim (Jimmy Mistry), um jovem e talentoso fotógrafo de origem paquistanesa e canadense, mas que vive em Londres com o noivo, Giles (Kristen Holden-Ried). Longe da família e falando o mínimo possível com os parentes tradicionalistas, Alim parece senão confortável, ao menos resignado com a separação (inclusive geográfica) entre estas duas instâncias da sua vida: a identidade de um jovem gay numa das cidades mais diversas do mundo, e a de um imigrante canadense de origem paquistanesa, parte da comunidade muçulmana egressa deste país. Este jogo, embora aparentemente harmônico, foi bastante tenso para o personagem, que inclusive criou uma espécie de ideal de comportamento: Alim, durante todo o filme, foi guiado em suas ações pelo espírito de Cary Grant, galã e ídolo hollywoodiano. Contudo, mais do que figura paterna, contraposta à mãe dominadora, Cary Grant encarna os valores de tolerância aparente e masculinidade da cultura ocidental. Ao ouvir um fantasma, o conflito de Alim se tornou muito claro ao telespectador: situado numa fronteira cultural entre valores herdados de um patrimônio coletivo identitário e o desejo homoerótico que não seria acolhido pela cultura paquistanesa. Daí tanto a fuga de Alim do Canadá, o seu desejo por Londres, como o desejo de separar as duas instâncias de sua vida, positivando o presente com a identidade “ocidental” e negativando o passado com a identidade “muçulmana”.

Esta frágil arrumação começou a se desfazer quando a mãe de Alim, Nuru Jahan, decidiu visitar o filho – motivada pelo noivado do sobrinho e os muitos questionamentos da comunidade sobre seu próprio filho que vivia distante e aparentemente sem seguir o script da vida de um bom crente: obter uma profissão reconhecida, casar-se e ter muitos filhos. Ela decide, pois, fazer pela segunda vez o caminho para a capital londrina, onde havia morado quando jovem, logo após enviuvar.

A chegada iminente da mãe colocou Alim em crise: recorreu ao seu “anjo” Cary Grant, e decidiu ocultar da mãe sua sexualidade, gostos e a vida de casal com Giles, seu namorado. A relação com Giles, nesta parte da película, se tornou mais complexa: por um lado, o namorado aparece como um contraponto plenamente integrado à cultura ocidental, apaixonado por Alim e disposto a ajudar o namorado no que puder, mesmo acreditando que a relação deles não deveria ser oculta, mas sim revelada para a mãe dominadora de Alim. Seguro de si e bonito, Giles apareceu como um sedutor – tanto de Alim como de sua mãe, Nuru, em momentos diferentes do filme, apesar de manter uma fidelidade rigorosa em relação à Alim. Apesar de ter encarado a situação com um bom humor desconcertante, Giles frequentemente encarou as demandas de Alim no que diz respeito às particularidades da cultura paquistanesa como questões menores, quase como caprichos bobos aos quais ele aceitava de maneira condescendente por amor ao namorado. Se em parte este comportamento foi inspirado pela verdadeira “desarrumação” da sua vida, já que passou da condição de namorado a de colega de quarto sem cerimônias, em parte este comportamento se explicaria por uma dificuldade em Giles de colocar os valores do namorado e da mãe no mesmo patamar que os seus próprio. A leitura que terminou fazendo foi a partir dos seus próprios valores, e não do caráter imperativo que os valores muçulmanos tinham (ao menos em certa medida) sobre Nuru, e, por extensão, sobre Alim. Assim, num certo momento do filme Giles e Nuru passaram um dia maravilhoso em Londres. Sedutor, Giles colocou Nuru no centro de um mundo fictício, feito de sonhos, desejos e memórias cinematográficas; o ponto alto deste “recomeço” – já que Nuru havia sido extremamente grosseira com Giles nos dias anteriores – foi quando partilharam uma garrafa de champanhe em um navio e turismo no rio Tâmisa. Nuru então abriu espaço para aquele que ela acredita ser um amigo de Alim, contanto as mágoas que tem com a capital inglesa, problemas na relação com o filho, e o que a moveu a buscar contato com ele em Londres: que ele se case com uma boa garota, e que retorne para o Canadá para assistir ao casamento do primo, etapa importante não apenas na vida de um muçulmano, mas também no seu papel e na posição de sua família dentro da comunidade. Viúva e longe do filho, Nuru gozava de uma posição desconfortável no Canadá justamente pela ausência de Alim, já que não pode capitalizar os sucessos do filho em seu benefício, nem cuidar dele e ajuda-lo a escolher uma boa esposa. De resto, o filme mostra com sagacidade os problemas da relação entre pais de países orientais com filhos que “fazem a América” (ou mais precisamente, o Ocidente europeu norte-americano) e terminam não apenas incorporando valores, mas assumindo demandas que são estranhas às gramáticas culturais nas quais se socializaram. Não se trata de dizer que uma cultura não possui determinado problema, ou não trata de determinada questão, como a homossexualidade ou o homoerotismo. Mas a solução que é culturalmente possível, em muitos casos, não apenas é divergente da ocidental como também parece despida de qualquer lógica ou humanidade. Foi neste terreno e transitando entre imperativos que no mais das vezes parecem inconciliáveis, que Alim precisou fazer as escolhas de vida que aparecem no filme como dadas – mas que na realidade, parecem dadas apenas quando a chave de tolerância e aceitação da homossexualidade é claramente possível. Psicologicamente, isto inclusive explica Cary Grant: em certa medida foi pelo olhar de seu “anjo” que Alim se tornou inteiro, integrado, unificando suas identidades discordantes num todo minimamente coerente (HALL, 2011, p. 32).

Observados estes detalhes, ficou evidente a enorme tensão apresentada num dos momentos mais importantes do filme: quando Nuru descobriu que Alim e Giles eram noivos, sua reação foi de choque e rejeição. Mas a reação de Alim em relação à tranquilidade e até satisfação de Giles também foi bastante hostil: ele compreendia as expectativas frustradas e o impacto que a revelação de sua sexualidade e vida afetiva e amorosa teriam sobre a mãe e a posição e Nuru na comunidade. Mas também compreendia que a tensão que fora aparentemente unificada pelo olhar de Cary Grant era frágil e estava novamente descolada. Alim a princípio se colocou numa posição de rejeição tanto da mãe como da sua própria cultura, tentando se apegar a posição que mantivera até ali. Sua opção, porém, foi duramente repreendida por Giles. Afinal, se ele dizia que a mãe era meramente uma paquistanesa atrasada, o que era ele próprio senão um paquistanês atrasado se fazendo passar por algo mais? Aqui, ficou evidente o limite que a empatia de Giles lhe permitia: por um lado, empático com a mãe de Alim e incomodado com o preconceito que este emprestava a sua mãe; mas por outro infantilizando as reações de seu namorado e de sua mãe, que eram exageradas. Para um gentleman inglês, aquilo parecia meramente um erro de comunicação e drama por uma questão de menor importância. Aqui o alto, loiro forte e sedutor Giles encarnava curiosamente alguns dos filmes apreciados por seu amado Alim: ele se parece bastante com a figura do heroico colonizador em filmes como Gunga Din, destinados ao elevado papel de civilizar os bárbaros ocidentais. Este filme, citado pelo fantasma de Cary Grant como uma película para acalmar Alim, possui uma das construções mais caricatas e infantilizadoras sobre os súditos do império britânico colonial na Índia (SILVEIRA, 1996. p. 191). Mesmo que seja uma coincidência, explicita a imagem que o Ocidente criou sobre o Oriente, com o propósito de um elogio da dominação (SAID, 2008, p. 25) – e que parece compartilhada tanto por Giles quanto pelo fantasma de Cary Grant, sendo o primeiro a sedução do soft power, e o segundo a  dominação mais clara e simples, evidenciada nos filmes tão apreciados por Alim – e também por sua mãe, Nuru, que viveu em Londres na juventude com o objetivo de se igualar as heroínas que via nas telas do cinema.

O terço final do filme, aproximadamente, se passou no Canadá, quando Alim decidiu participar do casamento do primo e tentar pelo menos uma aproximação com a mãe. Abalado com o fim do relacionamento que fora precipitado por Giles, Alim parecia ao mesmo tempo saudoso do senso de comunidade que parece então evidente no casamento, e incomodado com sua participação, que despertava curiosidade nos vizinhos. Acostumado a um respeito quase obrigatório da privacidade pelos fleumáticos ingleses, a curiosidade – que é a norma de uma sensibilidade diferente da ocidental – desconcertou Alim, que aceitou participar do ritual de despedida de solteiro do primo, mesmo que na defensiva. A razão ficou explícita algumas cenas depois, quando o primo de Alim, Khaled (Raoul Bhaneja) presença ausente mais incômoda para o telespectador, já que encarnaria um modelo de masculinidade e do papel social do homem, se revelou como uma fraude. Apesar de estar se casando, no dia da despedida de solteiro ele revelou sua atração por homens, e o desejo de transar com o primo. Caindo de bêbado, Khaled também demonstrou a solução que dá a relação entre religião e sexualidade: o casamento só poderia ser realizado com uma mulher, destinada a lhe dar muitos filhos e netos aos seus pais. Os homens são para a busca do prazer sexual, mas não para o casamento, noivado, laço afetivo. O fato de Alim não entender esta verdade aparentemente elementar foi o motivo de seu afastamento do local e do sofrimento decorrente daí. O que Khaled não imaginava foi à chegada de Nuru, que ouviu a conversa e a confissão do sobrinho modelar, que havia inclusive pago pela sua viagem para Londres. A tensão de Alim se tornou, então, evidente para a mãe, inclusive do ponto de vista das escolhas, do afastamento e do amor que seu filho devotava ao namorado. Ao mesmo tempo, a solução que Khaled dava para as demandas de sua sexualidade e o seu papel na comunidade foi apresentada como uma opção hipócrita e despida de significado verdadeiro. Contrasta tanto com o amor divergente de Giles e Alim, como com o amor convergente de seus próprios pais ou de sua tia e falecido tio. Khaled encarnou, no filme, a realidade dura que a devotada mãe de Alim não via ou fingia não ver: que a homossexualidade não é fruto da convivência com a cultura ocidental, ou uma dimensão à qual o Islamismo (no sentido das diferentes comunidades islâmicas pelo mundo) responda de forma multiforme. Na não-aceitação da homossexualidade existem graus distintos e soluções distintas. Inclusive, soluções de tolerância e espaço para a traição e relações marginalizadas, que a comunidade e as esposas optam por não ver. Este trecho do filme, aliás, ecoa a obra de Pasolini, As mil e uma noites onde um poeta muçulmano africano tem uma posição de destaque que não se desfaz ou foi corroída devido ao relacionamento explícito entre ele e três rapazes. Historicamente, a relação entre a homoafetividade e o Islamismo não se reduz a configuração contemporânea; em verdade, existiu uma ambivalência e até mesmo momentos de tolerância (TORRÃO FILHO, 2000, p.p. 98-104), à qual o filme pareceu dar espaço. O poema da epígrafe, neste sentido, um ótimo exemplo. Dada à segregação de gênero no ambiente da mesquita, apenas um homem poderia dizer aquelas palavras e apreciar um rapaz, belo como a lua, em suas orações.  O fato de ter ocorrido em solo sagrado demonstra uma relativa tolerância em relação ao desejo de um homem por um rapaz. E este é um dos exemplos mais pudicos da poesia homoerótica na Espanha muçulmana. Esta ambivalência não está apenas temporalmente situada no passado, ela é um subproduto da nossa contemporaneidade, especialmente no caso de enclaves de origem cultural e social distintas, como no caso da comunidade paquistanesa no Canadá. O reverso da atração exercida por um ocidente como local de oportunidades, e que levou a ondas de imigração foi à demanda de negociar entre as identidades herdadas do passado, e as opções de identidades distintas que eram possíveis no novo contexto, sobretudo nos países que formam o centro do capitalismo global (HALL, 2011, p. 88). E isto vale, inclusive, para as identidades que são propostas a partir de novas possibilidades de viver o homoerotismo, no caso de Alim.

Deste trecho em diante, o filme caminhou rapidamente para o final: ocorreu o casamento, no qual o fantasma de Cary Grant apareceu vestido com as roupas típicas do estereotipo do colonizador, tentando aconselhar Alim; mas o personagem parece menos perdido entre as identidades sobrepostas de homem muçulmano e gay. Prova deste fato foi o beijo publico entre Alim e Giles, em pleno casamento do primo, numa cena que embora seja condizente com a proposta de uma comédia romântica, foi extremamente pouco verossímil. Menos pelo beijo, e mais pela reação de incomodo decoroso da comunidade, que não reagiu ao gesto de carinho homoafetivo do casal, que, reconciliado, se retirou da festa, seguidos de Nuru que explica enigmaticamente a irmã a razão de sua própria saída. A personagem não se sente confortável em compartilhar da hipocrisia aparente da festa, que ocultava a sexualidade de Khaled e referendava seu papel na comunidade.

Alim e a mãe terminam por se reconciliar de uma forma não muito clara. Nem Alim nem Nuru chegam a um consenso se o conjunto de ofertas que a cultura ocidental faz aos personagens foi bom ou ruim. Mas parecem concordar que a solução não é nem um pouco simples: por um lado, a decorosa viúva começou a rever suas escolhas, inclusive no plano afetivo. E a encarar com uma naturalidade misteriosamente adquirida em poucos momentos a relação homoafetiva de seu filho. Já Alim assumiu uma posição mais autônoma na condução de sua própria vida. Terminou por aceitar a sobreposição de identidades, no lugar da segregação territorial e emotiva que mostrava no começo do filme:

O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas a um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda história sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu”(…) A identidade plenamente unificada, completa, segura, e coerente é uma fantasia. (HALL, 2011, p. 13)

Por fim, assumindo que a “crise de identidade” podia encetar novas soluções potenciais para um relacionamento homoafetivo, Alim se sentiu seguro o suficiente para desistir da tutela incômoda de Cary Grant, seguindo a vida com Giles. Esta opção representou, contudo, algo mais. Numa época de globalização, não é de admirar que as identidades sobrepostas procurem uma resposta que hierarquize e segregue menos. Em outras palavras, que Alim deixe de lado as respostas de Cary Grant, recendentes ao imperialismo mesmo que com a melhor das intenções. Queria ou não, Alim operou e opera com duas identidades distintas de maneira simultânea.  Cabe a ele transigir, colar, negociar as diferentes condições as quais ele se costura com a sociedade, em perpétua ligação – e não negação – com o passado, a tradição, a cultura. Na modernidade tardia líquida, esta opção não é sem sentido ou alienada: mas é uma possibilidade, inclusive, de resistir a uma posição de total alinhamento, seja em direção ao dogmatismo (no caso, religioso) ou ao niilismo. Contraditório, a mensagem mais interessante com o personagem Alim é a da administração das diferenças. No labirinto das identidades, é preciso não se deter numa parede sólida, mas procurar a possibilidade de outros caminhos em direção ao diálogo e a tolerância.

Referências:

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na pós-modernidade. 11ª Edição. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2011. 102 p.

TORRÃO FILHO, Amílcar. Tríbades galantes, fanchonos militantes. Homossexuais que fizeram história. São Paulo: Edições GLS, 2000. 294 p.

SAID, Edward. Prefácio da edição de 2003. In: Orientalismo.  O oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008. p.p. 11-26.

SILVEIRA, Renato da. Simba, o leão sanguinário: Revolta dos Mau Mau, cultura e marketing político. O Olho da História, v. 1, n.3, p. 191-216, 1996.