Sábado de noite, e o programa escolhido foi assistir praia do futuro. Eu, meu namorado e um casal de amigos. Expectativas muito grandes depois de uma fala de Wagner Moura que o filme não era gay… Sessão mais para o fim da noite no UCI Barra, inaugurado a poucos meses. O publico era bem diverso. Gays, héteros, lésbicas, a maioria próxima dos trinta anos, mais ou menos.
Destaque para as reações do público ao filme. Num universo de cem pessoas ou pouco mais, pelo menos dez pessoas saíram durante a sessão. Um grupo delas protestando sobre o nojo que sentiam das cenas de sexo, considerando um absurdo aquele tipo de coisa nas telonas. Um homem mais velho chegou mesmo a se levantar exclamando em voz alta que aquilo era demais, durante uma das cenas entre Donato (Wagner Moura) e Konrad (Clemens Schick). Saiu da sala, o que não deixa de ser uma lástima: na ânsia de afirmar sua masculinidade fora de toda a dúvida, me atrapalhou de ver o filme… Neste sentido, podemos pensar que Praia do Futuro tem o mérito de evidenciar os processos poucos visíveis, mas muito significativos, pelos quais se arquitetam os modelos de ser homem, especialmente de uma masculinidade compulsivamente heterossexual, machista e homofóbica. O incômodo demonstrado pelo espectador que se lastima do excesso que o filme demonstra vem da necessidade de se afirmar enquanto homem por via de uma tripla negação: não ser mulher, não ser criança, e não ser homossexual (BADINTER, 1993, p. 34). Necessidade compulsiva toda vez que um afago é substituído por um soco. Obsessiva, pois necessita de uma vigilância permanente de cada abraço ou aperto de mão, cada toque ou olhar. Imperativa, pois o menor sinal de desvio deve ser aniquilado. Eis um componente do modelo de masculinidade que serve de base para o comportamento do homem que se levantou, indignado, oprimido pelo imperativo de reafirmar sua masculinidade heterossexual diante de todos os outros presentes no cinema, performance que a muitos ainda parece indispensável e sinônimo de segurança e de costura das subjetividades internas que garantiria a boa ordem do mundo (HALL, 2012, p.p. 12-18).
Contudo, segurança frágil porque ilusória, como o rapaz provavelmente percebeu – mesmo que não tenha confessado isto senão ao seu travesseiro. Outras formas de masculinidade, ou seja, daquilo que constitui, que é próprio do masculino, estão em emergência. O gênero não é atemporal, mas criado socialmente na relação entre homens e mulheres em cada tempo e lugar determinados. A segurança aparente que a afirmação da masculinidade do indignado abre espaço para mostrar que existem outras possibilidades que subvertem hierarquias e borram a oposição entre pólos que parecem definitivamente afastados e estanques (SCOTT, 1995, p. 86). Não foi qualquer cena de beijo que deixou nosso pobre (de espírito) homem inconformado, foi a cena de sexo entre dois homens, e mais: a cena que pressupunha que um dos dois rapazes profundamente masculinos, barbados, atléticos seria passivo. Foi no exato momento que o ator do capitão nascimento, personagem com a macheza acima de qualquer duvida, deixou que outro homem tocasse sua bunda, evidenciando desejos e preferências sexuais. Mais do que o telespectador podia suportar imaginar, quem dirá ver! Imbróglio tão sério que gerou explicações apressadas e no minimo curiosas de um gerente do Cinépolis, diante da necessidade de avisar explicitamente e carimbar nas entradas que se tratava de um filme com cenas de sexo entre dois homens, fato que precisava ser deixado claro para evitar… o que? Reclamações futuras? Desespero de ver o descentrar e estilhaçar de valores que parecem socialmente muito naturais?
Colocando o dedo na ferida, Karim Aïnouz produziu um filme que merece dois qualificativos poderosos. O primeiro a de filme subversivo, porque questiona e desloca questões que parecem naturalmente corretas na sociedade, tirando os telespectadores (héteros, homos, gays, lésbicas) da zona de conforto: as cenas de sexo mostram afeto, carinho, desejo e tesão. Não são as cenas assépticas do cinema de enlatados norte-americanos, nem sequer as cenas de sexo de cueca que a rede Globo exibe: são cenas de transa, onde os corpos transpiram de desejo com gemidos, dor e prazer. O segundo qualificativo, a meu ver e para desespero de Wagner Moura é que se trata, sim, de um filme gay. Não apenas uma tônica gay, mas problematizando e complexificando as questões em torno de homens gays: a descoberta associada a necessidade de viver experiências de relacionamentos com outros homens longe de casa, problemas associados a conflitos entre lugares sociais prescritos e desejos pessoais, sem falar no próprio imbróglio das posições sexuais mais ou menos masculinas, para desespero dos g0ys – questão subjacente no ocidente desde ao menos a época da Inquisição. Um filme que poderia ser descrito como sobretudo gay, indicando questões que são objeto de debate e de ansiedade para muitos jovens que, descobrindo os prazeres homoeróticos se deparam com os limites e as possibilidades da sexuais, amorosas, identitárias.
O filme não é perfeito. Apesar de lançar generosamente uma miríade de questões para debate, não se prende a nenhuma delas. Se o fio condutor é a experiência e as relações afetivas e familiares de Donato, contrapostas primeiro como lugares prescritos e desejos proibidos, e depois da fuga de responsabilidades que retornam para cobrar a fatura, Aïnouz se preocupa mais com o panorama do que com as derivações dele. O telespectador está autorizado a sair do cinema com uma opinião aberta ou fechada sobre a experiência gay de Donato, do seu sucesso ou fracasso, dos seus problemas escolhas, cicatrizes e cruzes.
O filme possui, entretanto, uma mensagem que pode ser descrita como otimista. Ao perguntar ao irmão de dez ou onze anos o que ocorreria se sumisse no mar, o garoto responde que iria salvar Donato, mesmo detestando a agua. De uma forma inesperada é o que termina acontecendo quando Ayrton (um ótimo Jesuíta Barbosa) vai a Alemanha em busca do seu herói do passado, que por sete anos não havia tido qualquer contato com a família. Decidido a achar Donato, aprendeu alemão e não se deteve até obter a resposta de uma questão mal resolvida entre eles: como conciliar seu herói, o modelo de homem na infância com o homem que foi encontrar na Alemanha sete anos depois.
Referências:
BADINTER, Elizabeth. XY: sobre a identidade masculina. Tradução Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise Histórica. disponível em: http://pt.scribd.com/doc/89392865/Joan-Scott-Genero-uma-categoria-util-de-analise-historica . Acesso dia 19 de mai de 2014.
WAGNER Moura sobre praia do futuro. In: http://ultimosegundo.ig.com.br/cultura/cinema/2014-05-06/wagner-moura-sobre-praia-do-futuro-e-mais-do-que-o-filme-do-cara-gay.html . Acesso dia 19 de mai de 2014.
CINEMA alerta cliente sobre cenas de sexo em “Praia do Futuro” e provoca polêmica nas redes sociais.In:http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/cinema-alerta-cliente-sobre-cenas-de-sexo-em-praia-do-futuro-e-provoca-polemica-nas-redes-sociais/ . Acesso dia 21 de mai de 2014.
Originalmente publicado no Nùcleo UniSex, em 21 de maio de 2014