Entre nós: Uma comédia sobre a diversidade

Por Daniel Silva & Paulo Duarte

Entre nós, comédia dirigida e escrito por João Sanches é um texto magistral. Partindo de uma provocação sobre o tema da diversidade sexual – entendida como e diversidade de práticas sexuais, mas, sobretudo, de afetividades – o espetáculo gira em torno da descoberta do amor entre dois adolescentes, típicos (ou nem tanto) estudantes de ensino médio. Aliás, o grande mérito do texto parte daí: uma brincadeira inteligente com esteriótipos. Narrado da perspectiva de um rapaz “perfeito”, popular, esportista, bonito, estudioso chamado Rodrigo (Igor Epifânio), que se descobre apaixonado pelo misterioso, mimado, sarcástico e discreto Fabinho (Anderson Dy Souza). A partir daí, o texto se desenvolve em torno das tentativas desajeitadas por parte de Rodrigo para chamar a atenção e conquistar o amor de Fabinho, com os atores se revezando em interpretar outros personagens, um mais hilário que o outro.

Passando por descrições bem-humoradas de situações que grande parte dos jovens gays passaram – como por exemplo perder a virgindade, a pressão familiar e dos amigos para ter uma namorada, o espetáculo tem o mérito de criar empatia entre o público e o dilema dos personagens. Numa das cenas mais hilariantes do espetáculo, o pai de Rodrigo leva-o ao bordel de Dona Carmem, desejando que o rapaz perca logo a virgindade numa casa de luz vermelha com a mesma senhora que desvirginou todos os homens da família. Longe de criar algum incômodo do público, as fugas de Rodrigo – primeiro de Dona Carmem e depois de uma colega que força pra se tornar sua namorada, Larissa são acompanhadas de uma evidente simpatia do público.

Aliás, o público desempenha um papel importante no espetáculo. Os atores interagem com eles muita vezes de forma direta, explicando atitudes uns dos outros e, até mesmo, deixando a cargo do público o desfecho do romance. Este é um ponto fundamental no sucesso do espetáculo, especialmente quando se leva em consideração que o público inicial do espetáculo era formado por estudantes de escolas públicas de Salvador. Levando o tema da diversidade sexual ao palco, colocando como protagonistas jovens gays, a equação da homofobia é revertida: de comportamento normal ou socialmente aceito, a homofobia passa a figurar como um problema sério. Tanto como preconceito que leva a agressão e sofrimento – a vítima foi o personagem Fabinho – como reveladora de questões subterrâneas: o espetáculo em alguma medida referenda a ideia de que a homofobia tem como causa um ódio irracional dos próprios desejos, corporificado na agressão daqueles que, ao viver, colocam em questão uma identidade arduamente construída. Este certamente é o segundo grande mérito do espetáculo. Sem deixar de lado o tom de comédia por meio da acentuação dos traços mais caricatos dos personagens não protagonistas (como Bruno, o homofóbico com ciúmes do relacionamento de Rodrigo e Fabinho, ou a mãe super-protetora de Fabinho, Margarete), a diversidade sexual se coloca em dialética com a homofobia, inclusive a que ocorre em vários níveis. Se o ponto alto deste tema no espetáculo é a agressão, a atuação da diretora do colégio e da orientadora coloca em evidência a dificuldade que as escolas têm ao lidar com a diversidade justamente nas figuras representativas de autoridade e aconselhamento. Sobretudo ganha contornos importantes a tentativa de ocultamento, sob a rubrica da “confusão dos desejos” acompanhada de uma imprescindível discrição, reveladas respectivamente pela diretora e pela orientadora.

Mas há mais com outro grande mérito do espetáculo. Os personagens dos pais de Fabinho e Rodrigo, a despeitoo de um grau excessivo de ingerência na vida dos rapazes, ganham o público pela aceitação dos filhos. Em verdade, a grande preocupação de Margarete é que o filho tenha uma namorada que dispute o seu lugar de única mulher da casa; já o pai de Rodrigo, mesmo com a tentativa de garantir que o filho perca a virgindade com a experiente Dona Carmem, coloca o amor paterno acima da orientação sexual do filho.

Com este binônio – a escola como espaço de normatização do corpo e das sexualidade, e a família como espaço de expectativas que cedem lugar a graus de aceitação – Entre Nós constrói habilmente o microcosmo onde jovens – ou não tão jovens – gays tiveram as primeiras descobertas e experiências da sexualidade.
Contando com a participação de Leonardo Bittecntourt, guitarrista que abre o espetáculo com a música Ouvidos ao mistérios, de Leonardo Cavalcanti, e realiza efeitos de som no palco ao longo do show para ressaltar momentos de tensão ou de romance, o espetáculo é um prato cheio para pessoas de todas as idades. Inteligente sem deixar de ser compreensível, permite que o espectador coloque em perspectiva pressupostos que parecem muito bem estabelecidas, mas que na realidade se fazem mais por senso comum e preconceito do que por funcionar como algo compartilhado por todos. Espetáculo sobre a diversidade, esta não é apresentada como algo externo, coisa de teoria de professor ou de escola: mas como algo do cotidiano, que precisa ser reconhecido e respeitado no outro – e em si mesmo.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 5 de março de 2014

Longe do Paraíso (2002)

A descoberta e ocultação da homossexualidade ainda hoje é motivo de dor, infelicidade e mentiras. Não raro, a performance da identidade sexual dentro de uma perspectiva de heterossexualidade compulsória é problema com os quais indivíduos homossexuais precisam lidar cotidianamente. A tensão entre desejo e afetividade em contraste com expectativas sociais em torno do desempenho esperado e exigido de certo lugar social constitui um dos grandes dilemas do processo de descoberta, e de suas derivações.

Há uma vasta produção cinematográfica em torno dos sofrimentos dos homossexuais com as expectativas tensionados até um extremo com os desejos. Desde Um homem chamado flor de outono, até os Rapazes da banda, dezenas de filmes passearam pela amargura, desejo, amor, descoberta, saída do armário, etc. Contudo, muitos poucos falam das experiências daqueles que, uma vez tocados pela homossexualidade de uma pessoa próxima, precisam reconfigurar seu universo de referências de mundo e de relações. Uma excelente produção sobre o tema, sem sombra de dúvida, é Longe do paraíso, filme Todd Haynes, com uma magistral atuação de Julianne Moore, que lhe valeu uma indicação ao Óscar.
O enredo do filme é simples: Vivendo confortavelmente no surbúbio de Hathford, Connecticut, Catheleen (J. Moore) e Frank Whittaker são um típico casal de classe alta do final dos anos 1950 nos Estados Unidos: brancos, prósperos, com um casal de filhos, numa casa grande com jardim, uma empregada negra e um jardineiro – também negro. Executivo de uma empresa de televisores, Frank com sua bela esposa e impecável casamento é o principal garoto propaganda da marca. Em suma: para a educada, gentil e bela Kathy Whittaker, uma vida cor-de-rosa.

O mundo de Kathy começa a se despedaçar quando ela descobre que Frank, depois das longas horas-extras no escritório, tem encontros sexuais com outros homens. Chocada, Kathy exige que Frank se trate com um médico, o que gera um período de estabilidade e brigas entre ambos, culminando em agressão física. Neste meio tempo, Kathy desenvolve uma relação de proximidade e atração com o cavalheiro, belo e culto jardineiro, Raymond Deagan (Dennis Haysbert). Bom pai, trabalhador dedicado, elegante e gentil, ele encarna em certa medida os pontos que Frank lentamente deixa de ocupar na vida de Kathy.

Mas a relação quase que espiritual de Raymond e Kathy é motivo de grandes comoções na cidade. Por uma razão muito simples: Raymond é negro, e qualquer associação entre uma mulher branca e um homem negro aparece sob o signo da suspeita. Lentamente, Kathy deixa de ser a Mrs. Magnatech, garota-propaganda da marca, para se tornar uma personagem suspeita de adultério e de associação com movimentos pró-igualdade. A relação leva ao afastamento entre ambos, com consequências dolorosas: a filha de Raymond é apedrejada, assim como a casa do ex-jardineiro torna-se alvo de pedradas. Sem suportar o ódio da comunidade, ele termina migrando para o sul – quase ao mesmo tempo no qual Frank descobre o amor por um jovem rapaz, e decide se divorciar de Kathy para viver a paixão com outro homem.

Sem soluções fáceis nem pré-julgamentos, e longe de uma visão heróica sobre relações afetivas interraciais ou homossexuais, o filme tem o mérito de apresentar ao leitor uma reflexão inquietante: num mundo onde todos são vigiados cotidianamente, em vários níveis de sua experiência íntima, qual o limite possível para se falar de privacidade? E mais: o quando atos sexuais e\ou afetivos que fogem a uma norma tem mais envolvidos do que pode parecer a primeira vista.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 25 de fevereiro de 2014

Borboletas da vida (2007)

Complexificando a experiência homoerótica

 

Borboletas da vida é um filme diferente dos que costumam ser exibidos e discutidos no Tardes de Cinema. Em primeiro lugar, pelas dimensões – é pouco mais do que um curta metragem, do alto dos seus 38 minutos. Mas o tempo relativamente curto em relação a outros filmes e documentários não se traduz em falta de qualidade. Antes pelo contrário. Borboletas da vida é uma cartografia da experiência homoerótica no Rio de Janeiro, mas a partir da perspectiva da periferia – e não do centro geográfico e cultural dos calçadões de copacabana ou dos arcos da lapa. Mais precisamente, enfoca o microcosmo da baixada fluminense, sobretudo de Austin e Nova Iguaçu.

O foco do filme são as narrativas das experiências de vida de diferentes sujeitos a partir de suas vivências do homoerótismo. Também tem um tom de denúncia, no qual as astúcias e estratégias de sobrevivência ganham um tom heróico de subversão do sistema e de contestação da violência pelas bichas-boy, identidade ostentada pelas personagens do documentário. Assim, a metáfora de Borboletas da vida, talvez conduzida algumas vezes de forma equivocada, serve para pensar as trajetórias em dois vetores principais: primeiro, como transformação de um estado de larva a borboleta, da prisão ao chão (social) para a liberdade de alçar vôo, expressada na adoção de gestos, estética e jeito de corpo que fogem ao normal; em segundo lugar, metáfora da sobrevivência, pois a beleza da borboleta também funcionou como camuflagem para evitar predadores – o que expressou a negociação da vivência homoerótica em função do contexto social de intolerância e violência, mas que não impediu totalmente esta experiêcia.

Trazendo histórias de vida distintas, mas com um corte social relativamente aproximado – são pessoas de menor renda e escolaridade – o filme apresentou um interessante discurso em torno da identidade das bichas-boy. Sem se indentificaram como travestis, e muito menos como trangêneros – mas com elementos partilhados com ambas identidades -as bichas-boys vivem uma situação de ambivalência da qual sabem habilmente tirar partido. Reconhecendo que, ao assumir uma performance de gênero diferente da expectativa dada pelo sexo anatômico existem riscos de vida, de subsistência ou de sobrevivência,as bicha-boys fervem ou fazem shows levando na mala suas individualidades subterrâneas e deixando-as sair quando possível. Indício da resistência em condições difíceis, o documentários traduz habilmente o quando o subordinado pode, muitas vezes, negociar os termos de sua própria subordinação. Sem deixarem de viver uma identidade irreverente e resistente as normas, as bicha-boys demonstram o quanto a sociedade e as vivências do homoerotismo podem e deverm ser complexadas além de caixinhas como “travesti”, “gay”, “hetero”, etc.

Isto não significa, contudo, propor uma nova caixinha para estes sujeitos. Ao contrário. Embora existem elementos comuns apresentados no filme pelas bichas-boys, como por exemplo não optar por cirurgias de mudança corporal (“botar peitinho ou bunda”), ou levar a “bicha na mochila”, existem graus diferentes e formas diferentes de viver suas especificidades. Desde aqueles que são bichas-boys apenas nos espetáculos que realizam, se aproximando mais do imaginários das drag-queens, passando pelos que tem um jeito de corpo dentro de casa ou quando em grupo, os que vivem esta identidade de forma mais contínua. Por trás de tudo, entretanto, desponta uma espécie de “rede de sociabilidade” que mesmo com tensões geracionais (velha-guarda versus novas) proporcionaram um quadro de referência e, em muitos casos, de apoio para as bicha-boys. Num cenário de violência constante, o papel e a necessidade destes grupos de apoio mútuo é fundamental. Pleiteando, muitas vezes, a falta de um centro de assistência social (jurídica, psicológica, e de convivência) direcionados a homossexuais, travestis e bichas-boy, não deixam de ocupar espaços próprios. Um deles foi a casa noturna o site club, na qual as bicha-boys se vestem, maquiam e fervem a noite na pista e no palco.

Embora promovido pela ABIA – Associação brasileira interdisciplinar da AIDS, fundada por Betinho – a temática da AIDS apareceu de forma muito breve no filme, sobretudo no final quando o dono do site Club, Julio, demonstra preocupação em conscientizar os frequentadores quanto aos perigos da doença. Outro grande mérito do documentário foi não patologizar ou apoiar a ficção vivência homoerótica -> doença. Ou invés disto, denuncia frontalmente a ausência do poder público e as estratégias de sobrevivência das bichas-boys.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 5 de fevereiro de 2014 às 19:46

Um homem chamado flor de outono (1978)

O mundo dos maricóns, anarquistas e boêmios na Barcelona dos anos 1920.

Neste drama de Pedro Olea, ambientado na Barcelona dos anos 1920, homossexualidade, segredos e resistência se entrelaçam, num enredo fascinante. Lluis de Serracant (José Sacristán), filho de uma das famílias mais nobres da cidade, durante o dia atua como advogado engajado na defesa de operários presos pelo regime ditatorial de Miguel Primo de Rivera. A noite, entretanto, ele trabalha no cabaré Bataclan, sob a alcunha de Flor de Outono, cantora mais popular do local. O filme gira em torno do mistério da morte de uma outra travesti, a Coquinera (Antonio Corencia). As duas brigam durante o show de Flor de Outono, e quando a outra aparece morta na manhã seguinte, Flor de Outono é a principal suspeita da polícia e do perigoso noivo da Coquinera, Armengol (Roberto Carmadiel). Flor de Outono precisa, então, manobrar cuidadosamente sua vingança contra Armegol, sua atuação como principal articulador de um plano para eliminar Primo de Rivera, e a revelação de sua sexualidade para a mãe.

Flor de Outono foge bastante ao esteriótipo, comum em filmes dos anos 1970 e 80, que mostram a homossexualidade descolada de outros debates políticos da sociedade, ou mesmo sob uma ótica positiva. Embora com contornos de uma experiência trágica, a amargura presente em filmes como Os Rapazes da Banda (1970) não está presente na narrativa. O destino de Flor de Outono não parece predeterminado ou infeliz por natureza, mas sim sujeito a mudanças vindas de lutas políticas. Por outro a lado, o enredo não esconde as cenas de intimidade e carinho, tanto de Flor de Outono com seu namorado, Ricard (Carlos Piñero) como entre a Coquinera e Armengol. Considerando as condições do cinema nos anos 1970, e o impacto que filmes posteriores que mostraram cenas com o mesmo conteúdo, a exemplo de O segredo de Brokeback Mountain (2005), Alexandre (2004), o filme coloca a questão com muita naturalidade – especialmente quando comparados com filmes como Para Wong Foo, obrigado por tudo (1995), onde os personagens são colocados na categoria de anjos sem sexo.

O filme rapidamente coloca em questão a relação entre sexualidades divergentes e a boêmia, também detectada em outros trabalhos ambientados na mesma época na Espanha, a exemplo de Poucas Cinzas (2009). Neste caso, porém, a homossexualidade e o travestinidade é inscrita com mais força no seu contexto social subterrâneo, que relaciona profundamente sujeitos marginais. Maricões, anarquistas, operários pobres, prostitutas, . Sem tratar de personagens mundialmente famosos como Lorca e Dalí, proporciona um entedimento mais denso do submundo gay da época, e da sua relação, inclusive, com a política. Sem dúvida, um dos filmes mais interessantes do gênero.
Um adendo: o filme tem a participação de ninguém menos que Pedro Almodóvar, como Flor de Nicarágua, rainha da banana, uma das travestis que fazem show no Bataclán.²


¹ Bataclan também é o nome de uma famoso Cabaré na cidade de Ilhéus, Bahia, famosos nos anos 1920 e popularizado pelas obras de Jorge Amado, como Gabriela, Cravo e Canela. O Bataclan ilheense e sua congênere em Barcelona fazem referência a um famoso café-concerto parisiense, construído em 1864.

² Ver em  All About Amodóvar: A Passion for Cinema

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 23 de janeiro de 2014

Uma introdução às histórias da homossexualidade

Eu vi um jovem gracioso na mesquita
Lindo como a lua quando ela aparece
Aqueles que o vêem curvando-se para orar dizem:
“Todos os meus desejos são para que ele se prostre ainda mais”.
(TORRÃO FILHO, 2000, p. 100)

 

TORRÃO FILHO, Amílcar Torrão. Tríbades galantes, fanchonos militantes. Homossexuais que fizeram história. São Paulo: Edições GLS, 2000. 294 p.

Uma das obras de divulgação mais interessantes sobre a temática LGBTT ao longo da história. Creio que esta é a melhor definição para este interessante trabalho de Amílcar Torrão Filho. Obra de síntese, não deixa de dar conta de alguns períodos que despertam mais interesse de curiosos sobre o tema, como o mundo greco-romano, ou a época e atuação das inquisições. Isto sem descuidar, em muitos momentos, de detalhes que são desconhecidos da maioria dos leitores brasileiros sobre o tema, como a primeira vaga do movimento de direitos civil LGBTT sob Magnus Hirschfeld, ou a tolerância do homoerotismo pelo islã no al-Andalus.

Os capítulos acompanham aquilo que se convencionou chamar de “grande narrativa” da história ocidental, indo da Babilônia a Grécia antiga, e centrando posteriormente sua análise, sobretudo, no mundo europeu e colonial. Acompanhando hora a vida de homossexuais que fizeram história, ou de personagens que tiveram alguma relação – como legisladores, médicos, políticos, etc. – Torrão Filho apresenta o tema com um texto leve e bem escrito, mas rigoroso e bem informado dentro das possibilidades de pesquisa do autor.

Os primeiros quatro capítulos quatro capítulos da obra focam a antiguidade, a idade média, o renascimento e a idade moderna. Este constitui, para fins desta análise, o “primeiro bloco do trabalho”, que é o mais interessante, por conter informações que podem ser surpreendentes para pessoas que estão fora da academia ou dos gay and lesbian studies. Assim, no capítulo sobre o medievo, descobrimos que o Al Andalus tinha não apenas uma produção de poesia homoerótica extremamente vasta e bastante explícita, como igualmente um grau de tolerância muito grande para com relações homoeróticas. Este lado pouco conhecido da história do islamismo ajuda a desconstruir um pouco a noção de que a homofobia e homossexualidade são invariantes culturais, ou que toda religião monoteísta é homofóbica: a relação destas com o homoerotismo variou muito ao longo do tempo e do espaço, como o autor procurou demonstrar.

Os capítulos do segundo bloco, que tratam do mundo contemporâneo, se filiam mais diretamente a proposta do autor de centrar a análise nos homossexuais que fizeram história, de Byron a Lorca, passando por Oscar Wilde, e sem esquecer os horrores do triângulo Rosa nazista, o autor faz uma análise que se tem uma falha é a brevidade. Obra de síntese, capítulos maiores seriam um fator desmotivador para um público mais amplo de leitores.

Os pontos de maior interesse desta segunda parte são o capítulo sobre o século XIX, no qual o autor lembra da importância de autores como Ulrichs ou Karól Maria Benkert, com os quais aparecem, respectivamente, os termos uranista e homossexual; e Magnus Hirschfeld, talvez o mais importante representante da primeira vaga dos direitos civis dos homossexuais (LAURITSEN & THORSTAD, 1874, p. 9-17) – embora Torrão Filho destaque muito mais a famosa petição para descriminalização da homossexualidade do Código Criminal do Reich.

O terceiro bloco trata, num único capítulo, do que se poderia chamar de história da homossexualidade no Brasil. Um balanço bastante equilibrado, seu autor aqui comete alguns pequenos deslizes. Primeiro, fica pouco claro se a atuação da inquisição em terras brasileiras era limitada a visitação, ou se havia algum tipo de estrutura montada para o trabalho do Santo Ofício – como de fato o era, sobretudo nos séculos XVII e XVIII, com os comissários e familiares do Santo Ofício (MOTT, 2010, p. 43-62). O maior problema, porém, é o XIX: o século que viu o surgimento dos termos “homossexualidade” e “homossexualismo” não apenas na Europa como no Brasil, por meio das teses das faculdades de medicina (TREVISAN, 2011m 171-185) merecia maiores detalhes.

O último bloco, também com um único capítulo sobre a relação entre homossexualidade e cristianismo. Um dos pontos altos da obra, senão pela análise das obras, por desmontar alguns dos argumentos que sustentariam a homofobia das igrejas cristãs. Citando a obra de teologia do padre Helminiak, com seu famoso O que a bíblia realmente diz sobre a homossexualidade, o autor faz o precioso trabalho de mostrar como uma leitura supostamente literal – mas, na prática, seletiva e descontextualizada – embasa os argumentos em torno do pecado de Sodoma, e da homossexualidade como uma abominação. Por fim, cita a obra Same sex unions in premodern Europe, da autoria de John Boswell.  Sem negar a polêmica, o autor mostra como Boswell defendeu, com base em documentos de uniões entre homens, que a Igreja católica havia apoiado uniões entre pessoas do mesmo sexo em seus primórdios. Num contexto brasileiro como o atual, onde a bancada religiosa cresce com base num discurso homofóbico, este capítulo desmonta a própria argumentação dos detratores de direitos LGBTT.

Referências:

MOTT, Luiz. Bahia: Inquisição & Sociedade. Salvador: EDUFBA, 2010. 293 p.

LAURITSEN, John; THORSTAD, David. The early homossexual rights movement (1864-1935). NY: Times Change press, 1974. 94 p.

TREVISAN, João Silvério. Devassos nos paraíso. A homossexualidade no Brasil, da colônia a atualidade. 6ª Edição. Rio de Janeiro: Record, 2011. 586 p.

 

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 8 de janeiro de 2014

 

 

Pecado da Carne (2009)

Pecado da carne, filme de 2009 dirigido por Haim Tabakman é um filme dotado de atmosfera. De fato, o longa transporta o telespectador para as sufocantes ruas do Meah Shearim, o bairro ultra-ortodoxo de Jerusalém, onde uma história de amor entre dois homens termina florescendo com consequências severas.

O longa gira em torno de Aaron Fleischman (Zohar Shtrauss), um dos mais respeitáveis membros da comunidade. Estudioso dos textos sagrados, pai e marido devotado, Aaron também trabalha como açougueiro da comunidade – função importante especialmente num subgrupo judaico que leva as estritas regras dietéticas a extremos. Responsável por uma função tão importante, o protagonista é obrigado a colocar um aviso de busca de um ajudante, já que o volume de trabalho é muito grande. Neste ponto do filme, somos apresentado ao jovem, belo e misterioso Erzi (Ran Danker), que foi aparentemente abandonado por um amigo. Sem lugar para ficar, ele pede emprego a Aaron, que consente em admitir o jovem sem experiência na função.

O filme em seguida apresenta a lenta aproximação física e afetiva dos dois homens, mostrando a tensão sexual entre Aaron e Erzi. Se o desejo por outros homens é rapidamente mostrado por Erzi, que busca reatar a amizade com um rapaz com o qual se envolvera pouco antes, Aaron é a outra face. Não apenas mais contido – se bem que mostrando um desejo sublimado pelo assistente – como também ligado a um discurso religioso que evoca a resistência ao desejo por outros homens.

Rapidamente, entretanto, a relação com Erzi se torna uma alternativa de vida para Aaron: não apenas um assistente ou um amante, mas uma possibilidade de escapar de um cotidiano difícil em em grande parte pouco satisfatório. Seja como pai, religioso ou marido, a frágil arquitetura de vida de Aaron não resiste ao desejo representado pelo assistente.

Neste trecho fica patente um dos elementos mais interessantes do filme: a sensação do sufocamento se traduz numa vigilância da comunidade enquanto instituição das condutas – inclusive sexuais – de seus membros. O romance entre ambos começa a se tornar de conhecimento público, despertando a ira dos vizinhos por duas razões: tanto a relação entre os dois entra no rol do que era considerado uma abominação, como implica no rompimento da confiança como guardião da pureza da comunidade na forma do seu papel como açougueiro. Assim, a mobilização contra os dois é bem mais poderosa do que um caso temporalmente análogo de sexo antes do casamento.
Sem soluções fáceis, o grande mérito de Pecado da Carne é pensar como as vivências do homoerotismo possuem soluções que em seu contexto podem ter consequências bastante graves. Neste sentido, não deixa de ser uma importante reflexão sobre tolerância e intolerância, imposições religiosas de ordem religiosa, bem como os graus de internalização e de concilialção que estas regras podem ter nos sujeitos que vivem sobre elas.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 07 de Janeiro de 2014

Pink money, Parte I

O cenário é uma grande livraria da cidade de Salvador. Público certo, cotidiano, agitado e diverso dentro de quem pode frequentar aquele tipo de estabelecimento.  Gente apressada, gente com tempo, gente correndo atrás de presentes ou de entretenimento. Pessoalmente, nada a fazer por ali exceto esperar pelas compras da minha carona – e ler alguma coisa de passagem.

Sem muita paciência pra livros amplos ou difíceis, passeio muito pra lá e pra cá. Passo na parte de história, claro, quando vejo uma pequena prateleira com livros de temáticas GLS. Tremenda surpresa, naquele canto esquecido na livraria (que parece bem ordenada: bestselers > literatura > filosofia > história > GLS, entre filosofia e história). Folheio muito interessado os livros. Bastante literatura picante, alguns livros informativos. Algo de psicologia, e um livro com esquetes do Tom of Finland. Um rapaz ao meu lado olha num tom meio especulativo para mim, talvez chocado ou estimulado com a capa do livro.

Mas a questão que fica mais ou menos incômoda pelo resto do dia é esta: porque este lugar na livraria? Porque tão escondida? Porque aquele tipo de literatura? Porque tantos autores homossexuais e gays, ou com trabalhos nesta temática – fico apenas com Wilde ou Kenneth J Dover que não estão por lá – não tem espaço nesta pequena prateleira? Ou, posto de outra forma, que tipo de lógica governa esta ordem dos espaços dentro de uma livraria?

Neste caso, alguns pontos parecem bastante claros. Um, é inegavelmente um passo a frente colocar uma prateleira de temática GLS/LGBTT numa grande livraria. Dois: autores consagrados ou acadêmicos que tenham temática homossexual não entram nestas prateleiras. São relegados a lugares mais visíveis. Mesmo quando o livro desenvolve uma análise sobre a homossexualidade, parece existir algum tipo de segregação. Como se apenas quando a temática gay fosse um rótulo irremovível (sem chances para “literatura”, ou “história”) é que deva ser colocado naquela prateleira. Terceiro, o local é bem particular. Entre história e filosofia, dentro do campo das humanidades. Pouca produção? Pouca procura? Um pouco dos dois, talvez? Respostas em aberto.

Em tempos onde o Pink Money começa a interessar empresários no Brasil, pouco me admira que as pessoas tentem surfar nesta onda, lucrando poderosamente com o jogo das identidades no presente. Os elementos que podem ser significados como partes do pertencimento determinado ideal – marcas de cuecas, sungas, óculos, tipos de música e em menor grau literatura e cinema – também integram este jogo. Neste meio tempo, a visibilidade pode vir de duas “raízes”, por assim dizer. Uma delas é a da tolerância pragmática, devido ao dinheiro. Comprar a leniência, silêncio ou assentimento do outro, por assim dizer. A outra talvez tenha origem numa aceitação da diversidade – onde o particular integra, questiona e transforma o modelo. Acharia pobre estar num relacionamento com um gay machista. Também acho pobre privilegiar produtos que reproduzam pura e simplesmente estereótipos – como o machismo da frase anterior. Ambas podem ser encontradas, creio, no Pink Money – ou em prateleiras de produtos direcionados.

Mas há mais. Não estou defendendo a supercompartimentalização. Eu não compraria um livro ou objeto somente porque seu autor é gay. Nem acho que todos os produtos elaborados com esta temática devem estar dentro da prateleira GLS da livraria (ou da caixinha)… Mas gostaria que a divisão não fosse de tantos extremos, entre o tudo e o quase nada. Claro, num tempo onde o processo de construção identitária ainda está em negociação estas dicotomias são compreensíveis – mas não creio que devemos nos deixar levar por ela. Gostaria, talvez, que a temática GLBTT/GLS mobilizasse tanto as obras da livraria quando subtemas relevantes a exemplo de literatura fantástica ou direito administrativo mobilizam.

Apenas uma lembrança. Um dos primeiros lugares onde encontrei livros com temática GLBTT de todos os tipos – histórica, filosófica, literária e erótica – foi à livraria Grandes Autores, que ficava em Ondina a menos de vinte metros do meu colégio. Depois da aula, corria pra lá e fazia minhas leituras clandestinas em pé na prateleira, morrendo de medo da próxima página de um romance gay e da chegada de um colega de sala. Mas foi nesta mesma prateleira que vi pela primeira vez obras como os devassos no paraíso de Trevisan, ou os tríbades galantes, fanchonos militantes de Torrão Filho. Quase dez anos atrás a livraria deu lugar a um banco do Brasil. Numa grande livraria ou sebo, nunca mais vi qualquer literatura ou estante gay. No máximo, uma de erotismo/sexualidade/sexologia. Agora eu vejo, e fico com minha cisma. O que mudou?

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 26 de Novembro de 2013

Poucas cinzas (Little ashes, 2008)

Neste drama histórico dirigido por Paul Morrison e ambientando na Madri dos anos 1920 e 30, vemos a difícil relação entre três das maiores personalidades da primeira metade do século XX em seus campos de atuação: o pintor Salavador Dalí (Robert Patisson) e o poeta e dramaturgo Federico Garcia Lorca (Jávier Beltrán), além Luiz Buñuel (Mathew McNulty), cineasta de filmes como Un Chien Andalou (1928).

O filme enfoca a aproximação dos três ao longo de uma quase quinze anos: de 1922, quando Dali chega à residência de estudantes da Academia de Belas Artes, até 1928, ano que marcou o começo de um longo período de afastamento; e depois de 1928 a 1936, quando Dalí e Buñuel já em Paris participam de diversos movimentos de vanguarda como o surrealismo, ao mesmo tempo em que propõe uma forma de viver a arte diferente da de Lorca. Para este, o fundamental era transformar a Espanha, mas a partir do patrimônio cultural e dos temas relevantes para uma sociedade profundamente convulsionada pelos anseios democráticos da esquerda revolucionária e pelo facismo nacionalista. Buñuel, por sua vez, tinha uma proposta mais iconoclasta que questionaria a própria cultura espanhola, em lugar de tentar transformá-la de forma concreta. Dalí, por sua vez, acompanha Lorca num primeiro momento – antes de se decidir por uma posição apolítica e indiferente.

O foco do filme foi a difícil relação amorosa entre Federico Garcia Lorca e Salvador Dalí, enlace que ficou oculto do grande público por décadas. O longa demonstra não apenas a lenta aproximação física e intelectual entre os dois jovens estudantes, como deixa clara a homofobia reinante na maioria dos meios – inclusive no meio artístico, sendo esta repreensão presente sobretudo na figura de Buñuel. O relacionamento é pontuado pela personalidade exuberante e fora do comum de Dalí, profundamente amado, mas incompreendido, por Lorca. A situação chegou ao extremo quando foi descoberta por Buñuel, o que precipitou tanto a separação física e amorosa dos personagens quanto à opção por caminhos distintos de atuação política, artística e social.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 22 de Outubro de 2013

Mambo Italiano (2003)

Nesta comédia de 2003, o diretor Émile Gaudreault retratou com maestria a acomodação da homossexualidade por uma tradicional – ou nem tanto – família italiana. O longa gira em torno da saída do armário de Angelo Barberini (Luke Kirby) o filho mais novo de um casal de imigrantes italianos que vivem confortavelmente instalados num bairro italiano numa grande cidade canadense. Angelo está longe de ser o filho ideal para Gino (Paul Sorvino) e Maria (Ginette Reno): além de não desejar seguir a profissão dos sonhos dos pais, como advogado, o jovem se sente preso às aspirações e preconceitos da comunidade onde vive. Além destas questões, Angelo tem outro grande segredo: é homossexual no armário para a família, e morre de medo que os pais descubram seu grande segredo.

O longa nos transfere, logo nos seus primeiros minutos para o passado e presente imediato de Angelo, mostrando como a homossexualidade desviante sempre foi um problema desde a infância. Na escola, seus colegas o humilhavam, e o bullying termina separando Angelo de seu melhor amigo de infância, Nino Paventi (Peter Miller). Junto com a criação sufocante dos pais e a morte da tia Yollanda (Tara Nicodemo), única pessoa que parecia compreender o inconformismo de Angelo, estes fatos perseguem o protagonistas como fantasmas poderosos até o final do filme. A solução inicial que Angelo encontra é sair da casa dos pais aos 27 anos, o que gera uma crise familiar profunda, afinal, qualquer saída antes do casamento ou da morte parece prematura na tradicional família Barberini.

A trama do filme passa, então, para o enredo principal com o relacionamento secreto entre Nino e Angelo, que voltaram a ser amigos depois de tantos anos de afastamento. Inicialmente satisfeito com o segredo, rapidamente Angelo se desgasta com as mentiras que precisa contar aos pais, que insistem em arrumar belas moças para sair com o filho. A saída do armário precipita a descoberta do relacionamento entre Angelo e Nino, e desencadeia a crise das duas famílias em como lidar com dois “omossessuales”. Aqui o longa começa a ganhar mais profundidade, sem deixar de lado o humor: enquanto os Barberini saem de um contexto de negação para a aceitação do filho, tentando acomodar tanto a tradição de uma família italiana quanto as diferenças e inconformidades que Angelo apresenta, a mãe viúva de Nino, Lina Paventi (Mary Walsh) simplesmente opta por ignorar a homossexualidade do seu filho. Nino não é homossexual, mas sim um comedor, que passava por uma fase da qual em breve sairia. Lina ao longo do filme procura vencer pelo cansaço a resistência de Nino, tentando conformar seu filho ao papel para o qual ele parecia destinado: policial respeitável, filho adorado, marido perfeito. O resultado deste empreendimento é o matrimônio de Nino com a pouco respeitável Pina Lunetti (Sophie Lorain), também colega de escola dos rapazes.

A acomodação da homossexualidade pela família, no filme, é mostrada sobre estes dois prismas, bastante diversos entre si. Por um lado, a aceitação lenta e gradual pelos Barberini; por outro, a opção de ignorar e mascarar pelos Paventi. Sem fazer necessariamente um elogio de um e outro, o diretor demonstra com maestria como o processo de identificação com algo – uma comunidade, neste caso – é negociado e mediado por valores e aspirações com as quais os personagens são criados (HALL, 2011, p.p 77-91). Angelo sempre experimentou uma masculinidade subalternizada, e de certa forma esta experiência de estar à margem abria espaço para que ele buscasse outras referências, externas ao mundo da comunidade italiana. Assim, Angelo experimenta a visita, por exemplo, ao gay village, o bairro gay. Após a visita, embora assuma um discurso de rejeição da identidade gay, Angelo não deixa de se sentir questionado por ela a ponto de admitir a possibilidade de se encontrar naquela comunidade. Mais: a rejeição da identidade gay e do bairro gay parece ser causada muito mais por uma pressão externa do que por uma opção deliberada de Angelo. Assim, o personagem admite odiar o bairro gay apenas quando Nino se aborrece pela visita. Da mesma forma, Angelo se pergunta a razão do namorado não desejar pertencer à associação de policiais gays – demonstrando o quanto o seu pertencimento a identidade comunal criada no bairro italiano é em verdade frágil e sujeita a adaptações.

Isto explica, inclusive, a dimensão humana de Nino e Angelo. O primeiro não admite a identidade gay, e tenta sublimar ou, na impossibilidade, ocultar seus desejos por homens. Inclusive o casamento não o impede de se relacionar com outros homens fora do leito conjugal, colocando em dúvida a “conversão” que Pina afirmava ter realizado. O desejo por homens e a rejeição da identidade gay aproxima Nino da ambiguidade do comedor, tensionado entre desejo e papel social. Neste sentido, o momento no qual as famílias mais se hostilizam é quando Lina e Gino discutem quem é o ativo e o passivo da relação.

Por sua vez, Angelo não é um protagonista heroico. Revela-se muitas vezes grosseiro com os pais, intragável com a irmã e pouco compreensivo com o namorado. Em dado momento, quando decide se tornar voluntário no tele-ajuda gay, Angelo é incapaz de mostrar algum nível de empatia com o sofrimento alheio. Ao mesmo tempo, diz desgostar de efeminados. Neste momento em especial demonstra uma marca muito comum entre gays: a rejeição da efeminação, como se de alguma forma a aproximação com o feminino fosse algo deletério, que deve ser evitado a todo custo. Colocando esta frase na boca do protagonista, o diretor não apenas o aproxima do telespectador, como ironiza o preconceito de Angelo: embora diga isto dos efeminados, é notável a própria aparência pouco máscula do personagem, que permite que ele seja pensado como tão efeminado como aqueles que ele critica.

Usando com inteligência ironia e humor, o diretor constrói uma comédia leve, onde os personagens são seres humanos fragmentados constantemente negociando e construindo suas identidades. Entre estar no bairro gay ou no bairro italiano, Angelo e Nino adaptam e negociam os termos do exercício de sua sexualidade, com maior ou menor sucesso. Sem falsos moralismos, o filme destaca o aspecto mais construtivo da identidade gay ou heterossexual, proporcionando uma interessante reflexão sobre preconceitos, família, aceitação e homossexualidade.

Referências:
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro, RJ: DP & A, 2006. 102 p.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 21 de Novembro de 2013

Baby Love (2008)

Dirigido por Vincent Garencq. Quais os limites e arranjos possíveis entre a identidade sexual e do desejo de ser pai? Este é o tema central do longa Baby Love (2008), longa-metragem francês centrando na figura de Manu (Lambert Wilson), um bem sucedido pediatra que deseja ser pai a todo custo, mesmo que a revelia de seu parceiro de longa data, Philip (Pascal Elbé), que termina por romper a relação com Manu quando este anuncia que entrou com um pedido de papéis para a adoção.

Tratando a parentalidade como algo aberto e frágil diante da falta de leis que permitam o casamento, ou da presença de diretrizes que impedem a doação por homossexuais. É assim que Manu se vê impedido de adotar um filho, devido à descoberta súbita, pela assistente social, da sua homossexualidade; e que termina por procurar a solução pouco usual de uma barriga de aluguel a partir de anúncios em sites de casais de lésbicas.

Neste contexto, Manu conhece e desenvolve uma relação de amizade com Fina (Pilar Lopez de Ayala), uma imigrante argentina ilegal que precisa de um casamento para permanecer em solo francês e realizar o sonho de trabalhar numa grande empresa. Sem grandes surpresas, termina aceitando ter o filho de Manu em troca do casamento que lhe garantiria um visto permanente.

A partir daí, a trama desenvolve uma reflexão interessante sobre o amor, a vontade (e o talento!) de ser pai e coisas que aprendemos como sendo naturais e que no cotidiano são sujeitas a negociação. A grande lição do filme é apresentar a identidade gay não como uma escolha entre a paternidade e a sexualidade, mas como um campo de possibilidades inclusive da formação de famílias e do direito de ser pai.

Originalmente publicado no Núcleo UniSex, em 18 de Outubro de 2013